Agulha Hispânica (2010-2011) | Arc Fase Ii (2012

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Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) domingo, 10 de janeiro de 2016 Agulha Revista de Cultura Agulha Revista de Cultura | Fase II | Número 14 | Editorial Revistas na América Hispânica São duas as circunstâncias básicas que norteiam a criação de uma revista literária: concentram em suas páginas os postulados estéticos de um determinado movimento ou escola, ou então se realizam na simples difusão eclética de textos. Os dois casos são perfeitamente corretos desde que o editorial defina e assuma a tendência escolhida. Mais recentemente as revistas se inclinam pela segunda opção, o que nos leva a uma aparente digressão: o que há por trás da reduzida ocorrência de movimentos literários ao longo das últimas décadas, hoje praticamente extintos? Entre os muitos valores que perdemos encontram-se o da palavra dada e o de compartilhar interesses. De todas as formas o homem foi levado a isolar-se em si mesmo e a não encontrar mais significado em honrar princípios e compromissos. Isto se deu de maneira tão simples que é um absurdo que tenhamos caído em artifício tão pouco engenhoso. E qual foi este astuto mecanismo? Isolar imagens, conceitos, significados, ecos. Tudo passa a ter sentido isoladamente, esdrúxula falácia, como se tivéssemos um homem aqui, uma cadeira ali e uma revista mais à frente. À medida em que ganha terreno esta falácia, deixamos de nos ver. Trocamos, por exemplo, o diálogo franco com pessoas pela oficina literária. Desacreditamos na ideia compartilhada e nos tornamos vassalos de uma autossuficiência inóspita. A comunicação à distância, por um outro exemplo, fascina a todos pela rapidez com que se dá, imprimindo ao tempo um caráter mais essencial que ao espaço, e sobretudo esquecendo-se de que não há razão de ser para conceitos como tempo e espaço se não têm no homem sua medida única e inconfundível. Somos levados a engolir tudo com a máxima velocidade, uma voracidade sem princípio. Desta forma, muitas vezes sem que nos apercebamos, comemoramos mais o surgimento de uma nova revista do que o marco de uma outra haver chegado a seu número 100. Este número para nós soa como um escândalo. Como algo pode durar tanto? Esta é a heresia pós-moderna: que algo dure mais que um instante. Então deveríamos queimar na fogueira do esquecimento um equatoriano chamado Fredo Arias de la Canal, por haver publicado no mês passado o número 407 da revista Norte, que edita no México desde 1929. Trata-se verdadeiramente de um escândalo e não pode aqui ser tomado como base para a nossa conversa. Contudo, podemos pensar no esforço do paraguaio Marcos Reyes Dávila que há onze anos edita em Porto Rico a revista Exégesis, mesmo país em que Manuel de la Puebla edita há 18 anos a revista Mairena. Por quase duas décadas esteve Octavio Paz envolvido com a direção da revista Vuelta, por ele fundada. Há mais de dez anos o argentino Eduardo Mosches edita no México a revista Blanco Móvil e também por mais de uma década Luis Alberto Crespo dirige na Venezuela a revista Imagen. Quando se fala hoje no nome do venezuelano Juan Liscano fatalmente o vinculamos ao largo período em que esteve à frente da revista Zona Franca, uma das mais importantes de seu país. Mais recentemente não se pode deixar de mencionar os esforços de Juan Riquelme ou Gonzalo Márquez Cristo, que se encontram à frente da venezuelana Babel e da colombiana Común Presencia. São muitos países e a referência a todos seria obviamente infrutífera, quando menos cansativa. O que talvez tenhamos percebido neste breve inventário é que me referi antes ao diretor do que à revista em si. Isto se dá porque intencionalmente citei revistas que pertencem àquela segunda instância inicialmente tratada, ou seja, que não se encontram diretamente vinculadas a um movimento ou a uma escola literária. Não quer dizer que não tenham um conselho executivo, a compartilhar ideias. Mas sabemos que é forte e decisiva a presença de seu diretor, ao mesmo tempo em que ali estão definidas linhas editoriais desvinculadas desta ou daquela tendência estética. São revistas que buscam uma medula a partir da abrangência. E o fazem por uma razão muito simples: entendem que representam, cada uma para seu país e seu tempo, o importante papel de catalisador de tudo o que se passa à sua volta, em todo o mundo, em termos de valores literários. Nenhuma das revistas até aqui mencionadas pôs em confronto aspectos regionais, políticos, etnográficos ou quaisquer outras formas de eventual reducionismo cultural. Isto quer dizer que souberam reconhecer igual importância a uma expressão local e outra oriunda do exterior. Insisto neste ponto, e vou me reportar aqui uma única vez à experiência editorial brasileira, pelo que foge de nosso tema, pelo rol inúmero de exemplos em que uma revista em Curitiba só publica gaúchos ou a revista de uma Universidade não publica quem não integre seu corpo acadêmico ou uma revista carioca exclui textos por atritos pessoais entre autor e diretor, revistas que não veem necessidade na publicação de textos bilíngues, no caso de publicação de autores de outros países, ou que dispensam a tradução de textos oriundos do espanhol etc. Encontro em algumas revistas hispano-americanas uma relevância do texto e uma despreocupação com a insustentável contagem de páginas, linhas ou caracteres exigida em outras instâncias. Não raro encontramos edições inteiras dedicadas a um único autor, ou mesmo um largo espaço destinado ao diálogo sobre esta ou aquela circunstância literária. Exemplos temos na venezuelana Babel, que ocasionalmente surge com edição inteira destinada à revisão crítica de alguns dos principais movimentos ou grupos decisivos à história da literatura em seu país; assim como as revistas Auditorium, da República Dominicana, ou Lotería, do Panamá, costumam realizar homenagens, que tomam toda uma edição, a seus principais escritores. Surge aqui um outro aspecto a ser destacado. Estas duas últimas revistas pertencem ao Estado, a exemplo da mexicana Fronteras e tantas outras mais, ou seja, são iniciativas de uma instância governamental. Mesmo assim, alcançam isenção suficiente para avaliar a trajetória estética de determinado autor sem prejuízo de ordem alguma. O aspecto a destacar seria a propriedade do Estado entender que não pode interferir no substrato da cultura que orienta a tradição de uma zona por ele administrada apenas circunstancialmente. Em outras palavras: nenhum governo, qualquer que seja sua apetência política, deve interferir no desdobramento estético de uma cultura. Mas antes que concluamos o que for possível concluir, não nos esqueçamos daquela outra circunstância que norteia a criação de uma revista literária: seu vínculo a movimentos, escolas, tendências. Em nome desta ligadura importantes revistas foram criadas na América Hispânica. Vou me referir a cinco delas em particular apenas para não tornar-me mais impertinente ou enjoativo que o devido. A cubana Orígenes, a mexicana Contemporáneos, a argentina Poesía Buenos Aires, a colombiana Mito e a chilena Mandrágora. Exceção feita a esta última, que trazia manifesta sua defesa do Surrealismo, as demais foram uma súmula da efervescência cultural que demarcava sua existência. Todas estiveram vinculadas a um grupo. E surgiram como um ideal comum, ou seja, como a fonte possível de um diálogo, o que se pode fazer brotar a partir da convivência de ideias. Neste sentido, creio que são as mais importantes revistas surgidas na América Hispânica. É curioso que nenhum historiador se deteve a estudá-las conjuntamente. Mais grave ainda: a fortuna crítica de algumas delas foi arregimentada por seus próprios diretores, não despertando até hoje a merecida atenção por parte de estudiosos do assunto. A mexicana Contemporáneos foi fundada em 1929 graças a um frutífero diálogo entre poetas como Jaime Torres Bodet e Xavier Villaurrutia. Jaime havia viajado a Cuba, onde tomara conhecimento de uma outra publicação, a polêmica Revista de Avance (1927-1930). Entendiam então que o prestígio internacional alcançado por algumas publicações européias poderiam se repetir a partir do México, desde que a aventura possuísse uma definição estética e fosse bem apresentada. Surgia assim revista e grupo, definindo uma das mais consistentes gerações em toda a América Hispânica. No Chile, dez anos depois, quando já surgira o grupo Mandrágora, que tinha entre seus articuladores Braulio Arenas e Enrique Gómez-Correa, ao final de 1938 resolveram criar a revista homônima, dando seqüência a um projeto editorial proposto pelo grupo. Por sete números editaram então a revista Mandrágora. Em 1944, o cubano José Lezama Lima funda a revista Orígenes, juntamente com o crítico José Rodríguez Feo. A inquietude de Lezama já o levara a fundar três outras revistas: Verbum, em 1937, da qual saíram três números; Espuela de plata, em 1939, que alcançaria a marca de seis números editados; e Nadie parecía, com Angel Gaztelu, em 1942, que chegaria ao décimo número. Segundo o próprio Lezama, a raiz dessas publicações foi a amizade, o diálogo freqüente e o respeito mútuo pelas opiniões peculiares. O nome da revista acabou confundindo-se com o de toda uma geração de escritores e artistas plásticos. Orígenes alcançou a marca de 40 números, durando até 1955. O grupo de intelectuais arregimentado por Raúl Gustavo Aguirre na Buenos Aires de 1950 insurgia-se contra toda forma de ortodoxia, ao mesmo tempo em que refutava ingerências acadêmicas no mundo da criação literária. Assim surgia Poesía-Buenos Aires, que por dez anos se manteve em franca atividade. A revista possuía textos programáticos, o que lhe dava um caráter de movimento. Em seu decorrer, ali próximo, em Bogotá, Jorge Gaitán Durán e Hernando Valencia Goelkel propunham o mais arrojado plano de desdobramento cultural de seu país. Pode-se dizer que a formação do grupo Mito, que logo sustentaria a publicação de uma revista homônima que atingiria a circulação de 25 números, foi o acontecimento mais marcante em toda a cultura colombiana, tanto por sua dimensão estética quanto por sua interferência no plano político. Esta é a geração de Alvaro Mutis e Gabriel García Márquez, os dois mais conhecidos dos brasileiros. Estas revistas tinham uma raiz comum: o entendimento de que cabe ao poeta zelar pela firmeza da cultura. A partir desta frase tão simples surge uma curiosidade: qual o limite de uma cultura? Até onde a minha orelha supura por má influência da cultura alheia ou me embriago glorioso sobre os restos de uma cultura dizimada por mim? Parece que não entendemos mais a ação da rosa dos ventos sobre o território da cultura. A defesa de uma expressão artística não pode estar vinculada a uma ramificação estética, mas o contrário jamais será dispensável. Não importa o quanto Velázquez era barroco, mas sim o quanto que o barroco espanhol foi expresso a partir da obra de Velázquez. Este deslocamento indevido tem sido a raiz de grande parte do prejuízo que hoje resulta de um inventário da produção artística em nosso tempo. De volta às revistas, hoje raridades só encontradas em coleções especializadas, como vimos, à frente delas estiveram alguns dos mais destacados poetas hispano-americanos deste século: José Lezama Lima, Xavier Villaurrutia, Raúl Gustavo Aguirre, Jorge Gaitán Durán e Enrique Gómez-Correa. Mas não as tenhamos aqui como casos isolados. No áureo período das vanguardas surgiu um verdadeiro enxame de revistas, algumas das quais com amplo destaque, a exemplo da peruana Las Moradas, dirigida por César Moro e Emilio Adolfo Westphalen, ou a argentina Ciclo, que trazia Enrique Molina e Aldo Pellegrini à frente. Relacioná-las, contudo, tomaria um tempo pouco aceitável. O que nos cabe aqui, além do informe geral, é compreender que as revistas literárias não se apartam de um leque de plumas sagradas da atividade humana na terra. O que isto quer dizer? Que não fazemos revistas e fazemos cadeiras e fazemos amor, como aspectos isolados de uma mesma natureza humana. Somente a estultice crê em uma gaveta desorganizada combinando com paz de espírito. O que isto quer dizer? Que revistas literárias não são anfetaminas ou jogos de guerra. Como somos dados à fraude, sempre levamos o meio para cama e o tratamos como fim. O que isto quer dizer? Que o empecilho real na edição de uma revista não é seu aspecto financeiro, mas antes o caráter da iniciativa. Mesmo diante da dificuldade financeira, o que se tem que discutir é como validar meios. Embora seja imenso o abismo procriado pelo equívoco entre os valores da fé e a fé em valores, a verdade é que o homem não é nada senão aquilo em que acredita. As revistas literárias nada são a não ser uma das formas de crença do homem nos valores humanos. Os editores ***** Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. ÍNDICE ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Brasílica de Benjamin Péret http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/antonio-candido-franco-brasilica-de.html CAMILO PRADO | Marcello Gama: decadente, supersticioso e anárquico http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/camilo-prado-marcello-gama-decadente.html DAVID CORTÉS CABÁN | Un acercamiento a Hilo de pájaro, de Antonio Trujillo http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/david-cortes-caban-un-acercamiento-hilo.html EDUARDO MOSCHES | La poesía contemporánea - Latinoamérica navega por la región de la tradición y la vanguardia http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/eduardo-mosches-la-poesia-contemporanea.html FLORIANO MARTINS | Las llaves del deseo y el surrealismo en el siglo XXI - Diálogo con Amirah Gazel y Alfonso Peña http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/floriano-martins-las-llaves-del-deseo-y.html HAROLD ALVARADO TENORIO | De sobremesa, la única novela de José Asunción Silva http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/harold-alvarado-tenorio-de-sobremesa-la.html LEONTINO FILHO | As esquinas alegóricas da cidade: um olhar http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/leontino-filho-as-esquinas-alegoricas.html LILIAN PESTRE DE ALMEIDA (Em colaboração com ANTONELLA EMINA) | Léon-Gontran Damas, o terceiro homem ou o primeiro poeta da Negritude francesa? http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/lilian-pestre-de-almeida-leon-gontran.html RICARDO ECHÁVARRI | Antonin Artaud, Una nota sobre el peyote http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/ricardo-echavarri-antonin-artaud-una.html VIVIANE DE SANTANA PAULO | O território imagético do escritor na pós-modernidade http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/viviane-de-santana-paulo-o-territorio.html artista convidado | JACOB KLINTOWITZ | Marcello Grassmann: matéria dos sonhos http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/01/jacob-klintowitz-marcello-grassmann.html Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] Editor Assistente | CLAUDIO WILLER 1999-2015 • Agulha Revista de Cultura, Floriano Martins - Fortaleza CE Brasil. Modelo Awesome Inc.. Imagens de modelo por bopshops. Tecnologia do Blogger. Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Brasílica de Benjamin Péret Os laços entre Benjamin Péret (1899-1959) e o Brasil são vastos e estreitos. Péret casou, em 1927, com uma brasileira, Elsie Houston, cantora lírica próxima de Villa-Lobos, filha duma carioca e dum médico estadunidense, cunhada de Mário Pedrosa (1905-1981), jornalista e crítico de arte, que aderiu ao Partido Comunista Brasileiro no ano do casamento de Elsie. Na qualidade de quadro comunista, Pedrosa foi enviado para Moscovo, onde devia seguir os cursos da Academia Lenine, o que nunca chegou a acontecer, pois ficou retido em Berlim, onde teve contactos estreitos com a Oposição Bolchevista de esquerda, próxima da dissidência trotskista, à qual aderiu. Em Paris, antes de regressar a casa, contactou com Benjamin Péret, seu cunhado, que decidiu seguir para o Brasil, onde chegou, na companhia de Elsie, em Fevereiro de 1929. Péret ficou no país quase três anos. Em 30 de Dezembro de 1931, depois de ter sido preso pela polícia carioca sob acusação de agitador comunista, foi expulso por um decreto de Getúlio Vargas e repatriado de barco para França. Durante esses três anos Péret teve um empenhamento político junto dos militantes trotskistas brasileiros – na qualidade de revisor de imprensa, profissão que exerceu no Rio – e deixou uma rica e importante colaboração no jornal paulista Diário da Noite. Péret regressou em Junho de 1955 ao Brasil, onde tinha amigos, familiares e correligionários políticos, acabando por ser preso em Abril do ano seguinte, à sombra do mesmo decreto que o expulsara no tempo de Getúlio, para ser libertado algum tempo depois e regressar a França em Agosto. Voltou então a escrever sobre os aspectos da cultura brasileira que mais o tocavam e que não eram os cabralinos. A relação de Péret com o Brasil é quase desconhecida em Portugal. Tirando algumas alusões de Júlio Henriques, desconhecemos qualquer outro trabalho sobre o assunto. O Brasil tem naturalmente dedicado outra atenção ao caso deste poeta que a revista de Antropofagia de Oswald de Andrade logo saudou no momento da chegada com uma vistosa saudação “Péret: um antropófago que merece cauins de cacique” (17-31929). Mais tarde, Sérgio Lima, o fundador, em 1965, do Grupo Surrealista de São Paulo, deu-lhe espaço na I Exposição Surrealista de São Paulo, em 1967, e sobre ele longamente discorreu (A Phala, n.º 1, São Paulo, Agosto, 1967, pp. 115-130). O mesmo Sérgio Lima esteve ainda associado, como tradutor e pesquisador à edição antológica da poesia e do ensaio de Péret Amor Sublime, 1985. Surgiram, depois disso, alguns estudos sobre a relação de Péret com o Brasil como os de Luís António Novaes, Robert Ponge (que organizou, com Mário Maestri a recente edição d’ O quilombo dos Palmares, 2002), Jean Puyade (que organizou a edição de Amor Sublime) ou Maria Leonor Lourenço de Abreu. Também Marcus Salgado se ocupou de Péret no livro A arqueologia do resíduo: os ossos do mundo sob o olhar selvagem (2013), dedicado ao ‘antropófago’ Flávio de Carvalho. Entre a chegada de Péret ao Brasil e a publicação em 1931 de Cobra Norato de Raul Bopp esteve prestes a acontecer uma síntese extraordinária entre antropofagia, tal como Oswald a encarou, regresso da Agulha Revista de Cultura arte ao primitivo, e surrealismo. Em 2013 o Grupo Decollage e o Grupo de TopoAnálise, ambos de São Paulo, editaram um panfleto Deste pão não comeremos, que homenageia um título de Péret de 1936. Está pronto a vir a lume no Brasil o volume, preparado por Sérgio Lima e Michael Löwy, reunindo a criação brasileira do autor, Benjamin Péret. O surrealismo no Brasil. Deixamos de seguida um elenco bibliográfico anotado sobre os textos brasileiros de Péret, ou de implicação brasileira, que conseguimos apurar. Como depressa se vê, são vastíssimos, ocupam cerca de trinta anos, indo desde 1930 até 1958, e têm uma importância crucial. Basta dizer que o seu autor é um dos pioneiros dos estudos afro-brasileiros e que o seu enfoque, pela abertura às culturas não ocidentais, e ainda pelo interesse obsessivo que põe no maravilhoso, é dos raros que atravessa com à-vontade a espessura interminável do psiquismo brasileiro para se perder nos confins amazónicos das suas fontes originais e paradisíacas. Citamos sempre por edições francesas, pois desconhecemos os textos primeiros publicados no Brasil, em língua portuguesa, por certo em versões de Mário Pedrosa. Desconhecem-se muitos dos manuscritos originais, pelo que os textos publicados hoje em francês são em alguns casos retroversões (da autoria de Carminda Batista). Esta minha bibliografia tem ao menos o interesse de complementar alguns estudos brasileiros, que citam Péret na versão portuguesa. “Candomblé et Makumba” [texto de B. Péret no Diário da Noite, 25 de Novembro de 1930; primeiro dos treze textos que o autor publicou neste jornal paulista e que fazem dele um dos pioneiros dos estudos afro-brasileiros. Segundo informação do texto, Péret frequentou os terreiros de candomblé do Rio de Janeiro; o que o cativou nos rituais religiosos afro-brasileiros foi a poesia primitiva e selvagem, segundo a expressão por ele usada; esta poesia estaria ausente das religiões evoluídas. Curiosas observações sobre o uso da maconha no candomblé, vista como planta afrodisíaca; versão francesa Carminda Batista], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 73-75. “Les compliments que m’adressa Nhança” [segundo texto de B. P. no Diário da Noite, 28 de Novembro de 1930; relato duma iniciação num terreiro de candomblé carioca; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 76-77. “Un dîner de saints” [terceiro texto de B. P. no Diário da Noite (data incerta entre 29 de Novembro e 8 de Dezembro); mais desenvolvimentos no terreiro de candomblé, relativos ao sacrifício dum galo, seguido de dança. Termina com a seguinte frase: Joséphine Baker não é senão uma muita pobre réplica das bailarinas do candomblé e da macumba; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 78-80. “La Prévision de saint Côme… ou saint Damien” [quarto texto de B. P. no Diário da Noite, 9 de Dezembro de 1930; nova cerimónia anotada; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução JeanLouis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 81-82. “Donner à manger à la tête” [quinto texto de B. P. no Diário da Noite, 11 de Dezembro de 1930; outro ponto da cerimónia do candomblé – que B. P. compara ao hermetismo medieval; síntese antropofágica-surrealista: donner à manger la tête; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução JeanLouis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 83-84. “Une fête à Xangô dans la loi d’Angola” [sexto texto de B. P. no Diário da Noite, 16 de Dezembro de 1930; novo relato de cerimónia em terreiro carioca com batida de tambor, dança e chegada do “santo”; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 85-86. “Mané Kurù, Pereké, Allan Kardec et C.ie” [sétimo texto de B. P. no Diário da Noite, 24 de Dezembro de 1930; relato de sessão de feitiçaria branca; contém desenho, que reproduz nove signos desenhados no chão pelo pai de santo; versão francesa de C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 87-90. “La Mythologie Nagô” [oitavo texto de B. P. no Diário da Noite, 27 de Dezembro de 1930; diálogo de Péret com um pai de santo a propósito dos deuses e forças do candomblé; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 91-92. “Ogum devant de tribunal suprême” [nono texto de B. P. no Diário da Noite, 31 de Dezembro de 1930; continua o diálogo com um pai de santo a propósito das forças do candomblé; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 93-95. “Les origines des croyances des noirs brésiliens” [décimo texto de B. P. no Diário da Noite, 2 de Janeiro de 1931; tentativa de sistematização dos conhecimentos relativos ao candomblé, com recurso à antropologia, à sociologia, à etnografia, à mitologia, ao folclore e a História das religiões; cita três autores Manuel Querino, “A raça africana e os seus costumes na Baía”; Braz do Amaral, “As tribus negras importadas”; Eduardo de Caldas Brito, “Motins Negros na Baía”; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 96-98. “Les origines des croyances des noirs brésiliens” [décimo primeiro texto de B. P. no Diário da Noite, 8 Janeiro de 1931; continuação do texto anterior com observações certeiras sobre a proveniência do candomblé e a situação da cultura afro-brasileira no tempo colonial; novas referências bibliográficas: W. B. Seabrook, L’île Magigue; Fernando Ortiz, Los Negros Brujos; Nina Rodrigues, A Tróia Negra; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 99-101. “Les origines des croyances des noirs brésiliens” [décimo segundo texto de B. P. no Diário da Noite, 15 de Janeiro de 1931; continuação dos textos anteriores com novas referências bibliográficas: Paul Lafargue, Le déterminisme économique de Karl Marx; versão francesa C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 102-103. “Les origines des croyances des noirs brésiliens” [décimo terceiro texto de B. P. no Diário da Noite, 30 Janeiro de 1931; conclusão do estudo começado a 2 de Janeiro; novas referências bibliográficas: Osório César, Misticismo e Loucura; S. Freud, Totem e Tabu; Karl Marx, Contribution à la critique de la philosophie du droit de Hegel; versão francesa de C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 99-101. “Les Religions Nègres du Brésil” [texto inédito, em francês, sem data, encontrado nos arquivos de Mário Pedrosa; ao que sei nunca foi traduzido em português; parece ser uma sistematização dos 9 primeiros textos publicados entre Novembro e Dezembro de 1930 no Diário da Noite; tudo indica ter sido escrito durante a primeira estadia de Péret no Brasil], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 109-116. “Lettres à Lívio Xavier” [três cartas em francês a Lívio Xavier (1900-1987), condiscípulo e correligionário de Mário Pedrosa e de B. Péret, fundador como eles da Liga Comunista do Brasil em 1931, de orientação trotskista; têm as seguintes datas: 12-5-1931; 1-8-1931; 7-9-1931; cartas com teor político e com importantes alusões ao livro de Benjamin Péret, Almirante Negro, escrito no Rio em 1931 e que narrava a revolta da Chibata, conduzida pelo marinheiro negro João Cândido contra os castigos corporais a que as altas patentes da marinha davam cobertura; o livro foi destruído pela polícia do Rio no momento da expulsão de Péret em 30-12-1931; conhecemse apenas 4 páginas usadas pelo Tribunal de Segurança Nacional no processo político contra M. Pedrosa, 1937], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 5, introdução Guy Prévan, Paris, Librairie José Corti, 1989, pp. 2427. “Lettre ouverte à Ligue Brésilienne” [datada de 19 de Março de 1932, foi escrita em Paris, no momento do regresso de Péret a França; ao chegar, Péret viu-se impedido de integrar as organizações trotskistas por estas julgarem incompatíveis a militância política trotskista e a actividade surrealista; Péret pede então apoio aos militantes do Brasil, que não obtém], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 5, introdução Guy Prévan, Paris, Librairie José Corti, 1989, pp. 37-39. “Lettre à Lívio Xavier” [carta escrita em francês (com despedida em português: abração e saudades do teu vilho) ao mesmo Lívio das cartas de 1931; dada em Paris (em casa de André Breton) em 31-10-1951], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 5, introdução Guy Prévan, Paris, Librairie José Corti, 1989, pp. 225. “Du fond de la forêt” [texto em francês, datado de 18 de Janeiro de 1956 (Rio de Janeiro), publicado na revista Le surréalisme même (n.º 2, Primavera, 1957); corresponde, como todos os outros que se seguem, ao período da segunda estadia de Péret no Brasil], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 147-151. “Maria Martins” [texto em francês, datado de Maio de 1956, publicado em catálogo de exposição de esculturas de Maria Martins; referências a figurações antediluvianas e amazónicas; André Breton, em 1947, escrevera já sobre Maria Martins, “Maria”, texto que figurou em dois catálogos, Maria. Recent Sculptures (Nova Iorque, 1947) e Les statues magiques de Maria (Paris, 1948); Maria Martins (1900-1973), viveu em Nova Iorque e Washington, onde o marido, Carlos Martins Souza, tinha a seu cargo a embaixada do Brasil, entre 1939 e 1948; conviveu aí com os surrealistas franceses no exílio], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 349-350. “L’Art populaire du Brésil” [texto em francês, sem data, publicado na revista Marco Polo (n.º 23, Setembro, 1956); informações riquíssimas sobre a arte popular do Nordeste brasileiro (Ceará, São Luís de Maranhão, Recife)], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 159-164. “Aspects précolombiens” [texto em francês, sem data, publicado na revista Marco Polo (n.º 23, Novembro, 1956); tentativa de compreender toda a cultura autóctone, pré-cabralina, que se estendeu desde a vertente ocidental dos Andes à costa do Atlântico; os dois últimos parágrafos, encimados por um título próprio, “Un art sans visage” autónomos e sinópticos de todo o restante texto, são dados por nós em tradução], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução JeanLouis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 352-357. “Que fut le Quilombo des Palmares” [texto publicado em língua portuguesa, talvez em versão revista por Mário Pedrosa (em casa de quem B. P. estava instalado no Rio de Janeiro), na revista brasileira ANHEMBI (n.º 65 e 66, Abril e Maio, 1956); pela extensão do trabalho, pela minúcia na recolha e no apuramento dos factos relativos a um dos eventos cruciais (sec. XVII, na fronteira de Pernambuco com Alagoas) da construção do Brasil anti-esclavagista, pela envergadura das interpretações antropológicas, precursoras por exemplo do trabalho de Pierre Clastre, parece a mais importante peça da bibliografia brasileira de B. Péret.; retroversão francesa de C. B.], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 37-72. “Arts de fête et de cérémonie” [texto em francês, sem data; foi publicado na revista francesa L’ Oeil (n.º 37, Janeiro, 1958); recorrendo aos elementos colhidos nas suas estadias entre os índios do centro e norte do Brasil, Péret estuda os cocares, as plumagens e outros adornos das celebrações colectivas], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 153-158. “Visites aux Indiens” [texto inédito escrito em francês, sem data, que faz parte do espólio de B. P.; foi escrito durante a segunda estadia no Brasil; dois extractos tiveram publicação, o primeiro em português na revista brasileira ANHEMBI (n.º 88, Março, 1958), com o título “Índios”, o segundo na revista francesa Le surréalisme même (n.º 5, Primavera, 1959), com o título “La lumière et la vie”; no conjunto texto de grande importância, em que Péret dá conta de estadias suas entre tribos índias (Goiânia, Chavantina, Ilha do Bananal, Tocantins) e regista casos do maior interesse; referências elogiosas ao trabalho de Cândido Rondon e de Orlando Vilas Boas], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 117-146. “Anthologie des mythes, legendes et contes populaires d’Amérique” [texto escrito em francês, constituído por duas partes distintas: a primeira, datada de Novembro de 1942, cidade do México, onde B. Péret chegou em Janeiro desse ano, fugido do nazismo, e onde se manteve até à Primavera de 1948, momento em que regressou a Paris, já em ruptura com a IVª Internacional, foi dada a lume em 1943 em Nova Iorque, nas Edições Surrealistas, num livro de homenagem, La parole est à Péret; a segunda, datada de Agosto de 1955, cidade de São Paulo; o conjunto foi publicado como introdução à Anthologie des mythes, legendes et contes populaires d’Amérique (1960); sobre este livro disse Marcus Salgado (A arqueologia do resíduo: os ossos do mundo sob o olhar selvagem, 2013: 15): Benjamin Péret (…) chegou a fazer uma estadia na Amazônia, em 1956, publicando lendas indígenas brasileiras em sua Anthologie des mythes, legendes et contes populaires d’Amérique], Benjamin Péret, Oeuvres complètes, volume 6, introdução Jean-Louis Bédouin, Paris, Librairie José Corti, 1992, pp. 15-35. ***** ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956). Poeta, ensaísta e editor. Estudioso do Surrealismo e da obra de Teixeira de Pascoaes. Em poesia publicou Murmúrios do mar de Peniche (1977), Corpos celestes (1990) e Estâncias reunidas: 1977-2002 (2002). Entre os títulos ensaísticos destacam-se Viagem a Pascoaes (2006) e Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal (2012). Atualmente dirige a revista A Ideia. Contacto: [email protected]. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) domingo, 10 de janeiro de 2016 CAMILO PRADO | Marcello Gama: decadente, supersticioso e anárquico Marcello Gama, cujo nome de registro era Possidônio Cezimbra Machado, nasceu no dia 3 de março de 1878, em Mostardas, no Rio Grande do Sul. Com 17 anos foi para Cachoeira do Sul e mais tarde para Porto Alegre, onde publicou os livros: Via sacra (1902, poesia), Avatar (1905, teatro), Noite de insomnia (1907, poema), além de poesias e textos variados dispersos em jornais e revistas. No Correio do Povo, jornal de Porto Alegre, publicou muitas crônicas e crítica literária. Fundou a revista Artes e letras (1898) e A lua (1900), esta última em Cachoeira do Sul. Com Zeferino Brasil criou também a revista teatral A peste bubônica. Suas obras completas, reunidas e publicadas pela Sociedade Felippe D’Oliveira com o título Via sacra e outros poemas (Rio de Janeiro, 1944), trazem os três livros mencionados acima mais poemas inéditos, copilados com o título de “Dispersos”. Era seu companheiro de boemia, além de Zeferino Brasil e outros escritores riograndenses, Felippe D’Oliveira, com quem mais tarde seguiria trabalhando junto no Rio de Janeiro, aonde ambos foram viver. É interessante a amizade entre eles, pois se encontram em Gama certos aspectos proto-surrealistas e Felippe D’Oliveira será quem, no Brasil, publicará o primeiro livro de poesia surrealista: Lanterna verde, em 1926. Parentescos estéticos com Gama, na obra de D’Oliveira, nota-se em seu primeiro livro, Vida extincta, de 1911, bem como em versos de Alguns poemas, livro póstumo de 1937. Fato, aliás, bastante natural, considerando a amizade e o comum convívio no meio ambiente simbolista da Porto Alegre do início do século passado. Pouco há sobre Gama na historiografia crítica brasileira. E quando sobre ele se diz alguma coisa, costuma-se ligar seu nome ao de Cesário Verde, talvez por conta de Andrade Muricy, que o incluiu no Panorama do movimento simbolista brasileiro, dando-lhe um lugar no limbo de nossa literatura e fazendo menção à poesia do cotidiano de Cesário Verde e Mário Pederneiras. O que os posteriores repetem até hoje (esquecendo-se, no entanto, de Pederneiras). Afirmações como a de Massaud Moisés, por exemplo, de que “Marcello Gama filiouse, mais do que outros simbolistas, à poesia do cotidiano de Cesário Verde” (1984, p.97) parecem-me ter mais motivos lusófonos do que consistência. Gama não era ‘filiado’ a ninguém, como também é duvidosa a ‘filiação’ desses “outros simbolistas”. O simples fato de um poeta ler outro não significa que se possa, menos ainda que se deva, reduzi-lo a uma sombra poética, ou a uma ‘filiação’. O que não significa que não tenha, obviamente, alguns traços de Cesário em sua poesia. Sabe-se que Cesário, Antonio Nobre e, pouco depois, Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, cá deixaram reflexos, sobretudo na segunda geração simbolista, à qual Gama pertenceu. Mas nada mais do que reflexos. Por outro lado, “legítimo precursor do Modernismo” é um tipo de afirmação de quem procura aproximar forçadamente (sempre!) poetas do início do século XX ao “movimento revolucionário de 1922” (sic), como faz Moisés (1984, p.100). Quando o contrário é o que parece ser mais coerente: os ‘modernistas’ é que são pós- Agulha Revista de Cultura (simbolistas), já que em toda e qualquer parte a modernidade literária, pós-romântica, nasce com decadentes e simbolistas. *** Marcello Gama, que dentre muitos poetas é só mais um decadente por natureza e simbolista, talvez, por opção, criou uma obra, assim como uma vida, movimentada inteiramente pela poesia. Não apenas isso tem alguma transparência em seus versos — “nasci para ser poeta... E que querem que eu faça?” (GAMA, 2010, p.28) —, [01] como também em sua vida: “integralmente poeta, queria viver no sonho e no mundo da poesia”, observou Andrade Muricy (1973, p.714). O que significa, aliado ao espírito ácrata de muitos de seus versos, que ele vivia a poesia em movimento. “Esse notável poeta, escreveu ainda Muricy, nunca se submeteu às obrigações duma vida regular, à burocracia, nem buscou sinecuras. Foi jornalista e conferencista e, por fim, empregado de escritório comercial. Tinha horror à vida do quotidiano, à vida do profissional”. Nem mesmo fez os tais “estudos regulares” (1973, p.714), o que é de se supor que era autodidata. Não deixa de ser curioso então, e contraditório, que um poeta que tinha “horror à vida do quotidiano” seja mencionado como tendo “pendor para os temas do cotidiano” (MOISÉS, 1984, p.99). Gama, sem ser um boêmio radical como o andarilho Fagundes Varella ou o festeiro Bernardino Lopes, era, no entanto, um boêmio; e isso se nota em sua poesia, onde aparece por vezes referências à vida noturna. Em Noite de insomnia há menção a um passado em que na “quietação da rua (...) Eis-me então a vagar, sem canto onde pernoite,/ discutindo commigo o sonho, a fome e a noite.” (p.27). No poema “Eu” há esta pergunta: “Que fiz eu nestes vinte e tres annos?”, seguida desta resposta: “Nada fiz!... Nada sou!...”, e ainda: “nem sempre ando limpo...” (p.46). O que lhe dá um caráter de poeta maldito que não esconde seu comportamento. Assim o aspecto mais evidente de sua poesia, parece-me, é a sua intimidade que aí se revela. Pois ele é um poeta intimista, um lírico intimista. A figura de seus familiares (a mãe falecida, as irmãs, etc.), suas crendices caseiras (o “agoiro”) e a sua lida diária com a poesia, carregada de certezas e dúvidas — “Sono un poeta o sono un imbecille” (GAMA, p.50) —, são uma constante nos seus versos. Por outro lado, além de uma freqüente referência a si mesmo, há o humor e certa rebeldia ético-política de caráter anarquista. E vale dizer, Gama não é um poeta de vocábulos raros, como foram muitos de seus contemporâneos aparentados, como ele, do Simbolismo. Sua linguagem é de fácil acesso, e sua poesia, mesmo que colorida pelo humor, muitas vezes sarcástica, ou por vezes indignada com a vida e com os viventes, é sombreada pela constante presença da morte. O que lhe permite um lugar entre os poetas do Decadentismo brasileiro. Mesmo Massaud Moisés o aceita como de “respiração decadente e simbolista” (1984, p.98). E o seu principal poema, Noite de insomnia, com aquele “E zás! derramo a tinta!” (p.42), seguido de um ato de excessiva crendice popular, leva-nos a pensar em uma exacerbada sinceridade artística, não numa poesia do cotidiano. Marcello Gama não canta o cotidiano, não poetiza o cotidiano, não tematiza o cotidiano. Ele insere no cotidiano a magna magia da poesia. Seu cenário caseiro e familiar é sempre distorcido por um olhar mágico, supersticioso muitas vezes, mas nunca faz a descrição desse cotidiano por si mesmo. O cotidiano surge na sua poesia como ambiente, não como tema. Seu tema é ele próprio. Dentro dessa sua intimidade temática, detenho-me aqui sobre três aspectos que me parecem bastante evidentes em sua poesia: o decadente, o supersticioso e o anárquico. 1 O decadente | Creio que não seria trabalho fácil encontrar seus semelhantes na literatura. Por mais que seu nome permaneça no limbo, sua poesia, que é pouca, move-se e blasfema originalidade. Tem uma inquietação agressiva, sente-se nela o pulsar de uma alma inquieta, um intimismo e um movimento sui generis. Além de que, inúmeras imagens, como a do álamo que “está a convalescer, no hospital da paizagem” (p.23) ou “O silencio rezava. Era como si houvesse/ romarias no espaço. A tarde tinha somno” (p.56), são de matizes tão surreais que não seria de todo exagero considerá-lo um proto-surrealista (lembrando que o surrealismo não se reduz à “escritaautomática”). O que significa pensá-lo como um poeta avant-garde. Algumas de suas imagens, no entanto, lembram às vezes o tom insano e decadente de Francisco Mangabeira e Augusto dos Anjos, além de outros. Em Gama: “Já então o senhor maestro Pensamento/ começara a reger a opera — Tormento” (p.58), em dos Anjos, no poema “Os doentes”: “Sómente, na metrópole vasia,/ Minha cabeça autónoma pensava!” (p.101). Ou ainda, quando entram versos de sinestesias, como nestes de Noite de insomnia: Tenho allucinações auditivas: escuto um longinquo rumor continuo de engrenagens. Nas brumas do meu ser vão-se esgueirando imagens sensoriais: obcessões de amarguras enormes; perturbações mentaes quasi epileptiformes. (p.29) que lembram plásticas semelhantes de dos Anjos, como, por exemplo, no poema “O caixão phantastico”: “Hoffmannicas visagens/ Enchiam meu encéphalo de imagens/ As mais contradictorias e confusas!”. (p.96) Mas uma imagem de Gama, a dos corvos que devoram as carnes do poeta num sonho, ainda em Noite de Insomnia, leva-nos a outras aproximações: Eis que então verifico: Sangra um naco de carne espendurado ao bico de um corvo, e um outro corvo investe, e em alvoroço, todo o bando faminto, acurvando o pescoço, esposteja-me rins, nuca, espadua, cintura. (p.33) pois tais versos tem uma impressionante semelhança com outros de Mangabeira, do “Canto VI” de “Dona Leonor” de Hostiário, obra de 1898: Cambaleando, caio por terra... E um grande corvo, Hediondo e torvo Em mim as suas garras enterra. Tira-me o craneo, leva-me os braços, Rasga-me o peito Magoado e estreito, Crocita nelle, fal-o em pedaços. (p.63) E aqui, mais por curiosa coincidência do que por aproximação, vale lembrar ainda os versos finais de um soneto de Pedro Kilkerry, “Amor volat”, transcrito por Jackson de Figueiredo em Humilhados e luminosos: E vivo só por ver, como curvo aqui fico, Esse passaro voar, largamente, um boccado De musculos pingando a levar-me no bico! (1921, p.87) Tais semelhanças imagéticas me parecem ser efeitos do mesmo ‘ar’ decadente respirado por nossos poetas na virada do século XIX para o XX. E a presença desse corvo, nos três poetas e em muitos decadentes, sabemos, provém de Edgar Allan Poe, aliás, citado por Gama no início de Noite de insomnia — “...desta noite que foi de illustrações aos poemas/ do tenebroso Poe” (p.21) —. Daí que, se há alguma semelhança entre a poesia de Gama e a de C. Verde, também há com outros poetas, sobretudo brasileiros, mas o fato de haver alguma semelhança não significa que haja ‘filiação’. Fora essa semelhança ‘plástica’ com dos Anjos, Mangabeira e Kilkerry, creio que sua temática, frequentemente subjetiva, é muito próxima do primeiro. Dos Anjos intitulou seu livro de Eu, Gama tem apenas um poema com este mesmo título (“Eu”, em Via sacra), no entanto, fala de si com tanta sinceridade e freqüência que é impossível não perceber certa obsessão consigo mesmo, própria do Decadentismo, cuja subjetividade provinda do Romantismo era exacerbada. Em Noite de insomnia, seu maior poema, há a ocorrência da palavra (“eu”) dezenove vezes e o mesmo pronome aparece várias vezes, mesmo que oculto, entre outros poemas, em “Taedium vitae” — “Dias de tedio, amargurados dias,/ são os que arrasto á espera de melhores!” (p.49) —, “Horas pardas” — “Olho dentro de mim e fico com pavor” (p.55) —, “Sugestões do ocaso” — “E estavamos nós dois: eu e minh’alma, ali;/ eu sentado, ella em frente; e puz-me a interrogal-a...” (p.56) — e “Versos de um convalescente” — “E por onde eu andava escutava este aviso:/ — ‘Marcello, é tempo já de tomares juizo!’” (p.59). Além disso, a menção ao próprio nome “Marcello” ocorre não só em “Versos de um convalescente”, mas também em Noite de insomnia e em “Como estudar?”, o que demonstra, uma vez mais, que sua temática é muito mais centrada em si mesmo do que no “cotidiano”. Por fim, independente da proximidade estética com Mangabeira e dos Anjos, o decadentismo na poesia de Gama fala por si: Por detraz da colina, entre balsas de mangue, um sol tisico morre, em um lago de sangue. Toda a paizagem tem lassidões de abandono... A tarde semicerra as palpebras, com somno. Contornos anulando, ergue-se um pó vermelho. E na tristura do ar, como se num espelho, reflectem-se feições e gestos de minh’alma: • Os tons quentes de luz que o sol, morrendo, espalma, e a sombria expressão, parada, dos cyprestes... (p.67) E é dentro deste ‘eu’ decadente que se encontram os outros dois aspectos que me parecem interessante dar algum relevo: o supersticioso e o anárquico. Aspectos que são contraditórios apenas em aparência. 2 O supersticioso | A localidade onde Gama nasceu, Mostardas, pertencente na época ao município de São José do Norte, encontra-se numa extensa faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o Atlântico. Tal região, ainda que não muito distante da capital gaúcha, é de se imaginar que devia ser bastante isolada, sobretudo culturalmente, quando de lá o poeta saiu, por volta de 1895, aos 17 anos de idade. Não se deve estranhar, então, que em sua poesia estejam presentes elementos da crendice popular da pacata cidade e de seus familiares. Em toda a sua poesia encontramos versos “supersticiosos”. Já no seu primeiro livro, Via sacra, e no primeiro poema, “Eu”: “Nasci á beira mar, numa noite aziaga” (p.45), e em “Sugestões do ocaso”: “Depois, risquei no chão uns signaes cabalisticos...” (p.57), em “Rua da Azenha” de “Dispersos”: “São de tristissimo augurio/ as impressões que tenho em meu novo tugurio” (p.65). E em Noite de insomnia são inúmeras as passagens: “Graças que agosto finda, agosto de mau signo/ que em meus nervos influe aziago e maligno” (p.22), “Um genio familiar que aos meus males assiste,/ acerca-se do leito: — Ó Marcello, estás triste...” (p.24), e entre outras passagens, ao fim do poema: “E para que desminta/ o azar, e em meu destino o agoiro não influa,/ corro á janella e atiro um jarro d’agua á rua” (p.42). Referências do tipo são comuns em muitos poetas, principalmente em simbolistas e decadentes, mas a constância em que surgem essas referências em Gama vai um pouco além dos outros, pois não sendo um poeta místico, a superstição nele transparece como adendo do ambiente familiar. Tais ocorrências fazem parte da sinceridade poética de Gama, que não esconde, de sua origem humilde, as ingênuas crenças populares. Por outro lado, que essas crenças se unam a certos rompantes anárquicos não é de todo contraditório, já que historicamente tais uniões são comuns, e alguns versos de Noite de insomnia nos levam a isso: Visiono um outro mundo: — Harmonias preclaras, culto alegre do Sol, das arvores, das searas, vida de amor e luz, com a bondade por norma: cousas que adivinhei e a que depois dei fórma lendo o Reclus, o Hamon e o belga Vandervelde. (p.27) Émile Vandervelde (1866-1938) foi um político socialista belga, mas também um fervoroso maçom; JeanJacques Élisée Reclus (1830-1905) foi geógrafo e anarquista; e o Conde Louis Hamon (1866-1936), vulgo “Cheiro”, é o nome maior da quiromancia moderna. Daí não haver contradição em Gama, a menos que se queira ver contradição também nesses autores, assim como em todos os místicos anárquicos e em muitos simbolistas que mesclaram sonho e anarquia. 3 O anárquico | Andrade Muricy diz que Gama “era um revolucionário social meramente lírico” e, logo em seguida, que “em Noite de insomnia há um breve manifesto de um socialismo simplista” (1973, p.714). Tal ingenuidade de interpretação é repetida por Moisés (1984, p.99) (“socialismo incipiente e ingênuo”). Talvez esperassem que um poeta com versos anárquicos devesse lançar bombas (aliás, como alhures alguns poetas na época o fizeram). Dário Vellozo, figura maior da poesia mística, neo-pitagórica, no Brasil, teve uma aproximação com o anarquismo (Conf. WILLER, 2007, p.356), mas nem por isso Muricy (1973, p.389) ou Moisés (1984, p.93), ao tocarem no assunto, falam em “socialismo simplista” ou “ingênuo” neste poeta. Alvaro Moreyra em um texto intitulado “Lembranças”, que consta ao final da edição das obras completas de Gama de 1944, menciona os livros anarquistas vindo de Lisboa e de Madri que: “Os grandes liam. Os pequenos liam. Anarquistas e anticlericais. Odiavam com muito amor” (1944, p.150). Gama entre eles. Jovem poeta vindo do interior, pobre, autoditada, lutando pela sobrevivência na Porto Alegre do início do século XX, “discutindo commigo o sonho, a fome e a noite” (p.27), não é difícil compreender que as leituras anarquistas, aliás simpatizadas por muitos simbolistas, e talvez o contato com socialistas da capital, se refletissem no seu espírito e conseqüentemente tomassem corpo em sua poesia: Deslocado na vida! Exilado no mundo! Eis tudo! E mais: — Votando um sincero e profundo horror a convenções, guerra, leis, patriotismo, governo, capital... (p.27) Não há aí propriamente “socialismo”, o que se nota é a intimidade do poeta se expressando com o vocabulário de suas leituras, e, claro, com a sinceridade de qualquer poeta que não seja parnasiano: Impor que eu abasteça o espirito rebelde com regras de moral, quando eu de outras o suppro!... Pois isso não será mais bestial que um estupro?! (p.27) Não penso que seja necessário ser anarquista para pensar dessa forma, ainda que seja dessa forma que todo anarquista pense. Por outro lado, o comportamento de um boêmio “mal vestido” (p.47) não era, e continua não sendo, bem visto socialmente. E um boêmio leitor de anarquistas pode muito bem, às vezes, mostrar-se irritado: “Hoje sinto-me assim, cheio de desalentos,/ e abafo impetos vis de proferir insultos...” (p.55), principalmente com o burguês, odiado e desprezado unanimemente pelos poetas decadentes e simbolistas: “Ou, si inveja não é, esses cães que me mordem/ que tem que eu, nos cafés, leve vida sem ordem?”. (p.47) Assim, não há “socialismo simplista” ou “incipiente” em Gama. Há sim, uma sinceridade muito grande, que faz parte de toda e qualquer poesia intimista, herdeira do Romantismo, e que, aliado ao espírito de decadência provindo do meio ambiente cultural da capital gaúcha na época e as leituras anarquistas, lhe permitem metáforas sui generis, como esta, onde transparece seu inconformismo e rebeldia individuais: “Melhor é não pensar... Sinto, se me concentro,/ que a alma de Ravachol tumultua cá dentro” (p.27). Não há aí pregação política. O anarquismo em Gama aparece como metáfora poética e como expressão sentimental, daí sim um revolucionário “lírico”, mas não “ingênuo”. François Claudius Koënigstein (1859-1892), dito Ravachol, é o mais conhecido dos anarquistas defensores da ação direta, ou seja, que usam da violência em prol da liberdade. No caso de Ravachol, deram-lhe fama, sobretudo, as muitas bombas que explodiu com o objetivo de matar burgueses e policiais. Quando Gama diz que “a alma de Ravachol tumultua cá dentro”, está expressando numa imagem, muito forte é verdade, três coisas que aqui interessam: seu sentimento mais íntimo, o sentimento de “dentro”, um espiritualismo, ao evocar a “alma” de Ravachol, e, por último, o ideário mais radical de liberdade de que temos notícia no mundo: o anarquismo. Esta evocação da alma de um anarquista parece nos remeter novamente à aparente contradição anarquia/superstição. No entanto, Gama é um poeta, e aos poetas tudo é permitido. Principalmente na evocação máxima da liberdade. Conclusão | Junto a esses elementos, encontra-se em Gama também o humor, característica que nele toma muitas vezes alguma acidez, própria do escárnio: “Oh! que bom se eu ficasse/ mais tranquillo, sereno, e dormisse, e sonhasse/ que era o papa, ou uma besta, ou um politico insigne!” (p.28). Característica esta que aponta para outras direções, mas que permite entrever um poeta que se torna mais e mais complexo na medida em que tentamos entendê-lo. Um poeta que, apesar da simplicidade das palavras, leva-nos para distintos caminhos que se cruzam em determinados pontos de convergência, para em seguida separarem-se e nos fazer calar: Illuminado ou verme, que se dirá de mim quando eu putrefizer-me? Que fui mau? Que fui bom? Mas, bom ou mau, que importa ás miserias do mundo uma dor que está morta? (p.30) Por fim, vale lembrar que este decadente, supersticioso e anárquico boêmio teve um fim nada poético: Marcello Gama faleceu, após uma vida irregular e boêmia, em 7 de março de 1915, no Rio de Janeiro, em conseqüência dum acidente, quando, depois das 4 horas da manhã, viajando de bonde, com destino à sua residência, na Rua Castro Alves no. 123, no Méier, ao passar, adormecido, pelo viaduto do Engenho Novo, foi arremessado à via férrea, de vinte metros de altura, por um movimento brusco do veículo. (MURICY, 1973, p.714) Tinha então 37 anos. Deixou três livros publicados e um longo poema, talvez inacabado segundo Muricy, com o título de O violoncelo do Diabo — que só Deus sabe onde foi parar. NOTA 01. Todas as citações de Marcello Gama são da edição de Noite de insomnia / Avatar e outros poemas (2010), portanto, nas próximas citações menciono apenas o número da página. Referências DOS ANJOS, Augusto. Eu e outras poesias. [8ª. edição] Rio de Janeiro: Bedeschi, s/d. FIGUEIREDO, Jackson. Humilhados e luminosos. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil/ Porto: Renascença Portuguesa, 1921. GAMA, Marcello. Noite de insomnia/ Avatar e outros poemas. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010. MANGABEIRA, Francisco. Poesias. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, s/d. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: simbolismo. São Paulo: Cultrix, 1984. MOREYRA, Alvaro. Lembranças, In GAMA, Marcello. Via sacra e outros poemas. Rio de Janeiro: Sociedade Felippe D’Oliveira, 1944. p. 149 – 152. MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro – vol. 2. [2ª. edição]. Brasília: MEC/INL, 1973. WILLER, Claudio Jorge. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna. 2007. 402fls. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ***** CAMILO PRADO (1969) nasceu no litoral da província de Santa Catarina. É tradutor, editor, autor de Nefas (2004), Uma Velha Casa Submarina (2005), Pulcritude (2006), Apologia e prazer de Jhenifer Heloizy (2012) e de alguns textos variados publicados em revistas acadêmicas e de cultura. Organiza a coleção Arquivo Decadente (Edições Nephelibata), na qual se inclui o livro Noite de insomnia/ Avatar e outros poemas (2010) de Marcello Gama. O presente texto, com algumas modificações, foi publicado em Letrônica: Revista Digital do PPGL, Vol. 3, No 1, em 2010. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 DAVID CORTÉS CABÁN | Un acercamiento a Hilo de pájaro, de Antonio Trujillo Hilo de pájaro (2013) se distingue por la intensidad de una expresión poética que consiste en asociar los árboles y las aves al devenir humano, y de una visión de la naturaleza distinta en cuanto a la imagen y el tono que la caracteriza. Este título sugestivo ciñe a la voz del pájaro la cadencia de la palabra que le da vida. Por otra parte, el segundo apartado del libro, “Relámpago de madera”, presenta composiciones en prosa que podrían haber formado un texto independiente si así el autor lo hubiese preferido. [1] Pero ambos apartados aquí reunidos, reflejan un armonioso diálogo con el árbol que lanza su misteriosa luz al desconocido que lee estos versos. Entremos pues a esta poesía como quien camina entre seres que piden la grata compañía del lector. Hilo de pájaro [2] está dedicado al poeta Aly Pérez (1955-2005) [3] y lleva un epígrafe de Vicente Gerbasi (1913-1992): “En ese tiempo yo me defendía / con el espíritu”. Un verso que en muchos sentidos confiere el roce espiritual que en la verdadera poesía resguarda al poeta de la dureza del mundo. Así, como encadenados a esa voz que recoge de lo más íntimo del ser la grata transparencia, llegamos a la presencia del árbol y a la virtud de esa luz tan propicia al verdor del ramaje que brilla en el viento. En esta poesía el árbol y las aves existen fundidos en la imagen de una naturaleza que resguarda la vida de toda animadversión. Y de ella nace una voz impregnada de un sentimiento que dignifica la existencia y las cosas que apenas advertimos en nuestro paso por la vida. Cosas que diariamente surgen a nuestros ojos como los árboles y los pájaros que silenciosamente trazan las claves de esta poesía. El primer poema del libro nos muestra este sentimiento en la dimensión metafórica que configura su tema: Un árbol niega su destino te inicia una palabra te pierde se oye en la savia y el vacío santigua el valle Agulha Revista de Cultura Este árbol, sin límites geográficos, revelará el paisaje imaginario que retiene estos versos. Y no estará al desamparo, ni será su presencia derrotada por la soledad del bosque pues su imagen se corresponderá con la fe espiritual que enaltece la vida del yo lírico. Es, en cierto modo, un símbolo representativo de la esencia humana constituida en la temática esencial de estos versos. Proyectará una visión de la naturaleza como una experiencia sagrada. Su imagen se irá fragmentando sobre la página en blanco y anunciándose como impregnada de una mística cristiana. Esto lo sentimos en la claridad del lenguaje que sincroniza la imagen del árbol con la vida, y el vuelo del pájaro con la más profunda dimensión del ser humano: Debajo de estos árboles cubro mi espíritu el ser se labra si guardo la altura de un pájaro Lo que busca y logra alcanzar Antonio Trujillo es proyectar la presencia reveladora del árbol como unidad del ser, como imagen afirmadora de la existencia fundida al pájaro y a la natural armonía de la que proceden. En este contexto el paisaje estará definido por una honda comunicación con todo lo que representa el árbol como referencia de la vida. Por eso, tanto el árbol como el pájaro implican una misma cosmovisión: el árbol no exige nada, ni tampoco el canto del pájaro, pero ambos están unidos por el delicado sentimiento que transmite su naturaleza. Este sentimiento se proyecta en las cosas que rodean al hablante y lo conducen a un estado de contemplación que alcanza un sentido superior del que abarca la mirada: ¡Las montañas crecen como los árboles anoche no estaban ahí! jura el encantado en la cicatriz de una ventana su hoja recién movida su antiguo mirar El poema recrea no lo que la mirada ve, sino lo que ya se había concretado como una imagen en el pensamiento. No lo que nace de una lógica impuesta por la voluntad, sino lo que siempre había estado allí creado por el misterio de la naturaleza. La creación de un paisaje que existe por su propia libertad y que evoca en el lector una reflexión: “¡Las montañas crecen / como los árboles / anoche no estaban ahí / jura el encantado”. Ciertamente lo que acaba de decir el hablante poético no consiste en elaborar una imagen abstracta, sino más bien lo que retiene la experiencia originaria de ese “antiguo mirar”. De allí ha fundido la imagen del árbol y la montaña para confirmar la experiencia de esa intuición poética. El poema presentará esta imagen como si ya fuera “la hoja / recién movida” que parece entrar por la ventana. Lo que sucede en el texto irá mostrándose como un reflejo de lo que ya había acontecido en el recogimiento de esa visión. Por eso la relación metafórica entre el concepto y la imagen poética requerirá siempre, en la poesía de Antonio Trujillo, de una gran concentración por parte de quien busque comprender lo que esa visión recoge. Además, lo que se dice en ella revelará una mística de la vida que se corresponderá con un sentimiento por la naturaleza. El alma abre las aguas del ser y su verdad nunca horada sola en el naciente universo redime el barro la astilla que somos En este poema el alma se impondrá sobre la materia para vincularse a aquello que posibilita la contemplación interior del ser revelando su verdadera luz. Irá trazando el camino de un paisaje que no quedará en la penumbra, sino revestido por el fulgor del universo que lo sustenta: “sola / en el naciente / universo”. Por eso, no será posible sentir lo que el alma revela al hablante poético sin pensar en lo que realmente sugiere su plano connotativo. Es decir, lo que el alma anhela a través de los elementos de la naturaleza (barro / astillas) en la fragilidad del cuerpo. Es así que el lenguaje crea un sentido místico [4] en conformidad con el mundo interior del poeta. De ahí también el significado del léxico que unifica los temas y proyecta la hondura de esta poesía: “pájaro”, árbol”, “alma”, “astilla”, “Dios”, “espíritu”, “flor”, “viento”, “madera”, elementos que trazan las claves de estos textos y subrayan el sentido religioso del lenguaje. La frase: “la astilla / que somos”, nos permite inferir el sentido que sugiere y sostiene esa experiencia en el contexto de lo “que somos” o creemos ser en el universo. En cierta medida esta hondura metafísica conduce al lector a una experiencia poética arraigada a un sentido religioso de la vida, como he señalado anteriormente. Pocos y profundos son los elementos que configuran estas imágenes que nacen del paisaje y de la experiencia de un yo en diálogo constante con la naturaleza. Realidad que guiará al yo lírico por la infinita gracia que se apodera del alma para mostrar la armonía de la naturaleza en la voz de un pájaro en vuelo: Una flor así sin nombre entre otras quién sabe pudo ser un pájaro o esa arena de río que la nace cuando roza el milagro y ocurre en lo blanco de ella y se eleva como un alma Cántico del pájaro en milagroso vuelo: pájaro transformado en rayo sigiloso, árbol que adquiere mil formas entre miles de árboles heridos por el hacha, heridos por las violentas fuerzas de la destrucción donde nadie contempla de la vida el milagroso acontecer. Por eso más allá del desafío que pueda encerrar la naturaleza misma, el poeta escribe desengañado de la realidad, escribe para que los árboles recojan su voz. Es decir, los límites en que el alma se detiene no en lo que excluye el cuerpo de su esencia sagrada y profunda, sino de aquello que lo envuelve en el inconfundible lenguaje de la vida. Poesía y naturaleza, paisaje y alma, árbol y pájaro consumidos por una misma doliente comprensión. Allí donde el alma se abandona a la búsqueda que permita inferir la esencia de las cosas en el sentido más solidario de la palabra: Es difícil hallar el alma de una palabra saber quien dice en el desierto del ser Es evidente que todo este sentimiento poético funda la visión que hace del árbol un símbolo esencial de la vida, [5] y del pájaro, la inocencia derribada de su cántico. Y todo en el tránsito del ser por el mundo recoge su mirada desparramada por la geografía de una naturaleza que se ofrece en su compañía. Allí donde lo conocido retiene la mirada en humilde evocación y el lenguaje se cierra como un círculo sobre el corazón que musita la perfecta palabra, la palabra que busca redimir el ser por la virtud que la contiene: Una palabra llama al ser está en uno redimirla lleva tiempo debo abrigar este deseo buscar en la voz de siempre ser el mismo Todo el poema exige comprender el verdadero sentido de las palabras y la búsqueda del conocimiento que estas implican: “buscar en la voz / de siempre / ser el mismo”. Este modo de “ser el mismo” nos permite acercarnos al hablante en el marco de esas relaciones que posibilitan la presencia de los árboles en su vida. Una realidad que encuentra en el amor a la naturaleza una ética de lo sagrado que revela lo que el alma siente. En otras palabras, lo que su espíritu recoge en la invisible presencia de lo eterno. Frente a esta visión el yo lírico irá tocado por la íntima realidad del paisaje y por lo que la palabra retiene de esa revelación que penetra su ser, lo que permanece oculto a la mirada común y se ofrece al poeta en misteriosa comunión con el entorno: Alguien un árbol blanco y oscuro te nombra cuando hablas en las malvas y lavas tu espíritu en su única hoja Cada texto es un camino de relampagueantes matices en el que sólo la palabra es capaz de liberar lo que el alma siente contra lo que destruye la fragilidad de la vida: “Señalo el despojo / y me uno / a la ruina del paisaje / también / soy nada / sin la rama primigenia” (p.101), dice el hablante. Y en ese desgarramiento existencial va su alma como desvanecida en el viento. En ese entorno vemos el árbol que unos momentos antes había dejado de ser materia y es ahora imagen de vida, voz que llama al poeta en la distancia: “Alguien / un árbol / blanco y oscuro / te nombra…” (p.91). Este mismo árbol irá transformando su materia hasta desencadenar otra visión en el segundo apartado del libro. Relámpago de madera abre y cierra como una unidad independiente: tiene sus propias características debido al contexto geográfico y temático que presenta. Comprendemos que todos estos poemas se interrelacionan y hacen del árbol la imagen central. El árbol mismo, abierto en cruz sobre el paisaje, será un símbolo esperanzador contra la maldad que se cierne sobre el mundo. Por eso la referencia esencial que entrelaza estas composiciones no será siempre de fácil comprensión para el lector: Aprende a persignarse de una forma clandestina, la cruz invisible del rito desciende casi en círculo desde la frente sin tocar los hombros ni rozar el pecho. En tal signo funda su salvación, su relámpago de madera. Esa “cruz invisible” establece una relación, un sentido que se contrapone a la maldad del mundo evocando una fe que pone al descubierto una voluntad ceñida a la naturaleza y fundada en la plenitud de la existencia. Por eso, este Taller real o metafórico en el que el Tío sostiene su mundo, representa además la esencia del ser que batalla contra el odio que destruye la existencia. Se trata ciertamente de una visión existencial que le devuelva al ser su humanidad perdida. De ahí que el árbol se convierta, simbólicamente, en una expresión más humana de la vida. En este contexto se nombrarán también las cosas como si fueran manifestaciones del ser en el marco de esa misma naturaleza: “Para nombrar / las cosas del cielo / un pájaro de cedro…” habíamos leído en el primer apartado. Pero ahora se trata de llegar a la inconfundible promesa que vivifica el espíritu frente a la historia y las miserias de la vida. Y es ahí en esa misma naturaleza donde el ser se queda en silencioso diálogo con las cosas que lo acercan a un universo más pleno y humano: Entonces se refugia, abre un madero y siente en la savia la voz del MAESTRO, y en la tragedia de esos clavos guarda lo más sagrado, su oficio. Y ese madero representa el reino de la gracia, allí donde no hay límites para la luz que penetra el ser hasta devolverle la fuerza que vivifica el espíritu. El taller se transforma así en ese espacio solidario que revela la presencia del árbol como un espejo que reflejara una imagen llena de interrogaciones. Y todas las cosas allí vistas y sentidas son aspectos individuales que configuran el lenguaje, la callada comunicación que sostiene la palabra, lo que sólo se escucha inclinando el corazón sobre el paisaje que resplandece: En el universo del taller toda herramienta es un signo, y cada tarde, guarda, protege esos misterios, son las aves del taller. El antiguo alfabeto de los artesanos, sin ellas no hay oficio, de faltar una, se derrama lo aprendido. El travesaño donde descansan es otro altar, un martillo o la tenaza de los siglos solo oyen a quien se inicia, y son en la historia del campo y las ciudades el más precioso lenguaje de los hombres. Sí, lector, detengámonos en este Taller donde lo más elemental confiere grandeza a los actos más humildes de la vida. Ciertamente, para que la razón no entre en lucha con el espíritu y el alma pueda vislumbrar la palabra que ilumina la casa interior, el misterio que nos reconcilia con la pureza del árbol que se abre al paisaje como imperecedera realidad. Y que el mal que busca destruir lo que enaltece la existencia muera de su misma maldad. Para que no existan guerras, ni destrucción, ni odios sino la palabra verdadera que extirpa del hombre todo signo de maldad. Y traspasemos ese horizonte invisible donde, El taller se colma en esa herencia, tiene otras voces y el alma de un árbol elige, desgrana sobre un banco de carpintería el espíritu de la lengua y enaltece para siempre su obstinada derrota. pues no hay secretos para quien entre a la poesía de Antonio Trujillo. El lector siempre hallará un árbol para resguardarse del mal. Un horizonte de tonalidades profundas en las que las ramas del árbol parecen querer tocar el cielo y señalar un camino y otra conciencia de la vida en la imagen del pájaro cuyo cántico no morirá. NOTAS 1. Sobre esta sección del libro, el poeta me advirtió lo siguiente: “Los Salones de FYFFES fueron un campo de concentración improvisado en Tenerife por el franquismo durante la Guerra Civil Española. En ellos estuvo prisionero un tío mío, hermano de mi madre, de quien oí en mi infancia historias terribles de ese lugar. Mi poemario Taller de cedro publicado en 1998, es el taller de carpintería de ese tío y el dolor de tener un oficio donde el árbol es sacrificado. Además es el descubrimiento religioso de un republicano, un hombre que buscaba a Dios dentro de la guerra. En ‘Relámpago de madera’ volví a ese taller de cedro. El tono, la otra voz, es la crónica y defensa que me propuse hacer por algunas oscuridades del primer texto…” 2. III Premio Nacional de Literatura Stefania Mosca, Mención Poesía. Alcaldía de Caracas. Fundarte. Julio de 2012. 3. Tengo junto a mí el poemario que publicó la revista Poesía bajo su sello editorial en el 2013. Como señala el poeta Igor Barreto tan emotivamente en el prólogo: “Éste, su libro póstumo, La comarca era la casa, reúne todos los aciertos de su escritura y es también un homenaje a sus amigos (a su hijo, Aly José) gente sencilla que aún vive en amena conversa bajo los pocos árboles que quedan”.En mi primer viaje a Mérida, en el verano del 2001, tuve ocasión de conocer y compartir con el poeta villacurano Aly Pérez. Tengo el presentimiento que a medida que pase el tiempo su poesía será mejor divulgada y comprendida. De Vicente Gerbasi he venido conociendo su importantísima obra que lo distingue como uno de los grandes poetas de Venezuela y de la lengua española en general. 4. Aunque este sentido religioso en la poesía de Antonio Trujillo nada tiene que ver con el misticismo español del siglo XVI, inspirado en una búsqueda constante del conocimiento divino y del anhelo de la unión permanente del alma con Dios, tiene un matiz que evoca el recuerdo de estas lecturas. 5. “Sin árbol no hay planeta”: ha expresado el poeta en la entrevista que le hiciera el escritor Freddy Ñáñez para el Suplemento Cultural del Diario Ciudad de Caracas, “Antonio Trujillo: Mejor es no morir...” Esta entrevista también aparece en Arteliteral, Revista electrónica mensual de literatura y arte. www.arteliteral.com>index. php>ensayos ***** DAVID CORTÉS CABÁN (Puerto Rico, 1952). Poeta, ensayista. Ha publicado los siguientes libros: Poemas y otros silencios (1981), Al final de las palabras (1985), Una hora antes (1990), El libro de los regresos (1999), y Ritual de pájaros: Antología personal 1981-2002 (2004). Fue cofundador de la revista Tercer Milenio. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Postado por Floriano Martins às 06:16 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 EDUARDO MOSCHES | La poesía contemporánea Latinoamérica navega por la región de la tradición y la vanguardia Dentro de una amplia y multifacética expresión, de diferentes formas de creación poética, podemos decir que todas estas se encuentran representadas en dos manifestaciones básicas al interior de la poesía latinoamericana: la que desciende de la influencia que en nuestro subcontinente tuvieron las vanguardias históricas mediante una lectura muy precisa, fundada en el juego del lenguaje; y otra, la que supone una vuelta al pasado al pasado poético y busca, de una manera no muy crítica, que mediante una ilusión y el deseo promete una estabilidad frente al caos dominante no sólo en la poesía, sino asimismo, en el aparato de valores del mundo contemporáneo. Creo que ambas expresiones, a pesar de las aparentes diferencias, ambas provienen de ese fenómeno irrefutable llamado vanguardia, el cual es un catalizador incuestionable dentro del marco de la poesía de América Latina. Con la conciencia de que ya se ha tratado a fondo el tema de la vanguardia, me parece necesario, solo recordar que con la intención de ejemplificar, sobre la primera de la posiciones de nuestra poesía desciende la línea presentada por Vicente Huidobro (Altazor, 1919) y el creacionismo, por César Vallejo (Trilce, 1922), Pablo Neruda (Primera y Segunda residencia, 1929), y Oliverio Girondo (En la masmédula, 1954). Ese esbozo de lineamiento, será reelaborado luego por aquellos como José Lezama Lima(1910), Nicanor Parra (1914) y Octavio Paz (1914). Con estos tres poetas, la herencia de la vanguardia se ramifica, pero ya con posiciones muy claras: la primacía de la visión por la imagen, en el caso de Lezama Lima, es la poética de la metáfora y de la imagen, poema parte de una metáfora, desarrolla progresivas metamorfosis metafóricas(tema, subtema, variaciones) hasta alcanzar la imagen que es la realidad de un mundo invisible, y como dice este mismo poeta. La imagen es naturaleza sustituida y por otra, la imagen poética nos constituye en imagen y en copia, porque platónicamente, el mundo es aquí imagen y es aquí imagen de la historia. Lezama Lima concibe a los seres humanos como entes de memoria, tanto memoria individual como memoria de la especie, concibe la vida, la historia, la realidad misma que el poema revela, bajo la especie de “ intuición poética y conciencia animista”, es decir como conocimiento del alma y por el alma. Para Lezama la poesía es capaz de entender la realidad, pero es también capaz de cambiarla. Nos acercaremos a este poeta y su poética con la lectura de Llamado del deseoso. Deseoso es aquel que huye de su madre./ Despedirse es cultivar un rocío para unirlo con la secularidad de la saliva./ La hondura del deseo no va por el secuestro del fruto./ Deseoso es dejar de ver a su madre./ es la ausencia del sucedido de un día que se prolonga/ y es a la noche que esa ausencia se va ahondando como un cuchillo./ En esa ausencia se abre una torre, en esa torre baila un fuego hueco./ Y así se ensancha y la Agulha Revista de Cultura ausencia de la madre es un mar en calma./ Pero el huidizo no ve el cuchillo que le pregunta,/ es de la madre, de los postigos asegurados, de quien se huye./ Lo descendido en vieja sangre suena vacío. La sangre es fría cuando desciende y cuando se esparce circulizada./ La madre es fría y está cumplida./ Si es por la muerte, su peso es doble y ya no nos suelta. No es por las puertas donde se asoma nuestro abandono. Es por un claro donde la madre sigue marchando, pero ya no nos sigue./ Es por un claro, allí se ciega y bien nos deja./ Ay del que no marcha esa marcha donde la madre ya no le sigue, ay. No es desconocerse, el conocerse sigue furioso como en sus días,/ pero el seguirlo sería quemarse dos en un árbol,/ y ella apetece mirar el árbol como una piedra, como una piedra con la inscripción de ancianos juegos. / Nuestro deseo no es alcanzar o incorporar un fruto ácido./ El deseoso es el huidizo/y de los cabezazos con nuestras madres cae el planeta centro de mesa/ y ¿ de dónde huimos, si no es de nuestras madres de quien huimos que nunca quieren recomenzar el mismo naipe, la misma noche de igual quijada descomunal? Y ahora continuando nuestra marcha entre poetas llegamos al cuestionamiento a profundidad del quehacer poético en Nicanor Parra mediante la puesta en duda del habla poética y de la figura de la expresión lírica. El intento de Parra consiste en escribir poemas que sean experiencias. que no traspongan la realidad en el juego de espejos de la palabra, sino que la recobren tal cual en el lenguaje. De allí su hostilidad sistemática hacia el símbolo, la alegoría, y en general lo que se puede llamar poderes evasivos de la palabra, en beneficio de su poder connotativo directo. Se trata de que las experiencias mismas tengan tal impacto poético, que no necesiten la ulterior poetización del tratamiento verbal, citemos al poeta, “La verdad, como la belleza, no se crea ni se pierde/ Y la poesía reside en las cosas o es simplemente un espejismo del espíritu.” Por cierto, que este ideal es, en cuanto tal, imposible. No menos imposible que el postulado inverso de la poesía pura con su absoluta predominio de la sustantividad formal, o que el postulado de la revelación espontánea del inconsciente de la escritura surrealista. El ideal absoluto de la antipoesía es imposible porque la experiencia poética se da sólo en y por la palabra, sólo se revela dentro del medio expresivo, sonido, imagen, por muchas proclamas teóricas que se hagan en favor del poema-vida, del poema -realidad. Pero esta imposibilidad, esta posibilidad límite, puede ser un excelente correctivo de las desatadas alquimias verbales. Y como tal ha obrado en los antipoemas, restableciendo una conexión con la vida inmediata, con la realidad banal o terrible de cada día. Escuchemos lo que se nos dice en el poema Mendigo: En la ciudad no se puede vivir/ Sin tener un oficio conocido:/ La policía hace cumplir la ley./ Algunos son soldados/ Que derraman su sangre por la patria/ (Esto va entre comillas)/ Otros son comerciantes astutos/ que le quitan un gramo/ O dos o tres al kilo de ciruelas./ Y los de mas allá son sacerdotes/ Que se pasean con un libro en la mano./ Cada uno conoce su negocio./ ¿ Y cuál creen ustedes que es el mío?/ Cantar/ mirando las ventanas cerradas/ Para ver si se abren/ Y/ me/ dejan/ caer/ una/ moneda. Y. lleguemos al poeta, que completa nuestro triángulo citado como muestra, y es Octavio Paz, aquel que es el ejemplo básico de la conciencia crítica del lenguaje. Desde su primer libro de teoría poética, El arco y la lira, hasta La otra voz, Paz mantuvo la idea de que la poesía es la alternativa entre la religión y la revolución. La poesía es la otra voz que instaura un espacio donde el hombre es más libre. En el libro Corriente Alterna el poeta sostiene que: “…No es poeta aquel que no haya sentido la tentación de destruir el lenguaje o de crear otro, aquel que no haya experimentado la fascinación de la no significación. Partiendo de una experiencia enriquecida por el tiempo histórico, Paz logra superar gracias a la creación poética, ese pensamiento idealista individualista, para el cual el mundo sólo es producto de la propia imaginación; las palabras operan el milagro de restablecer la comunicación rota, y dan así, su afirmación de la solidaridad humana. Y de su vasta obra leeremos algunos fragmentos de Piedra de Sol, para enraizarnos en su tierra poética: Amar es combatir, si dos se besan/ el mundo cambia, encarnan los deseos,/el pensamiento encarna, brotan alas/ en las espaldas del esclavo, el mundo/ es real y tangible, el vino es vino/ el pan vuelve a saber, el agua es agua, amar es combatir, es abrir puertas… …nunca la vida es nuestra, es de los otros,/ la vida no es de nadie, todos somos/ la vida -pan de sol para los otros-,/ los otros todos que nosotros somos-,/ soy otro cuando soy, los actos míos/ son más míos si son también de todos,/ para que pueda ser he de ser otro,/ salir de mí, buscarme entre los otros/ los otros que no son si yo no existo,/los otros que me dan plena existencia,/ no soy, no hay yo, siempre somos nosotros… La segunda manifestación clara de la poesía latinoamericana se sostiene en la confirmación en nuestro presente, de un pasado poético: el pasado de la lengua, que abarcaría como la historia de la literatura en lengua española en su relación con la América Latina. Esta bifurcación de la poesía latinoamericana se plantea en forma nítida en una ruptura muy evidente, que se hace explícita a partir de 1971 con la aparición del poemario Contra natura de Rodolfo Hinostroza, entre la práctica de una estética del fragmento y el comienzo de una poesía narrativa. Este poeta peruano, de acuerdo a Eduardo Milán, se le encuentra “…Desterrando la indiferencia histórica tan proclive a las tendencias experimentales, encarnó el suceso público desde su individualidad crítica. En un caldo de cultivo que va desde Marx a Pound, Eliot-Olson, de Sartre a la gastronomía, al zodíaco; de Nietzsche al arte pop de los sesenta, su expresión induce un sentido paródico del poder, las utopías, la academia.” Fragmento de Para llegar a Nazca: Las percepciones hablan, y no solamente hablan,/ sino que me he pasados dos años/ esperando que me hablen,/ Es más corto/ que esperar el correo de New York, París o Berlín/ para saber cuál es la onda”/ Eh! Y la escultura/ que enterraste en el mar, Cabo Creus, Aphrodisium,/ ha florecido ya? Florecerá antes del fin del mundo? El misterio/ labrado por el mar se hará visible?/ Los perros del océano/ se frotan el pellejo en las aristas/ del Templo Cúbico/ que yace bajo 70 brazas de agua,/ sagrado/ porque no está a la venta Y un corto fragmento de otro poema titulado Algo de dialéctica: Según la regla de oro/ que descubre en los hombres de negocios/ una turbia avidez, una ratería, y en el poder/ una arbitrariedad, una maldiciente esponja de mil ojos./ De manera que la vida/ dependía de la muerte, la salud/ de millones de enfermos, el poder/ de los desposeídos./ La Naturaleza dijo: “No obstante/ si niegas el milagro de la carne, de las hortalizas y de la inteligencia/ eso es como matar a la gallina de los huevos dorados… Esta marcada diferenciación tiene que ver con el momento histórico y con una interpretación de ese mismo momento. La forma del fragmento se vuelve idónea en estos momentos por ser la representación de la idea de un derrumbamiento del mundo. Es una respuesta formal a la sustitución del concepto de tiempo por el de espacio-tiempo. En este espacio de la tradición y el fragmento no podemos dejar de decir algunas palabras en relación a la denominada corriente del neobarroco, o como se ha llegado a expresar ésta en el Río de la Plata, o sea Argentina y Uruguay, con el sello de la denominación de neobarroso. Esta diferenciación de caracterización hacia el posible clásico barroco es un poco como esa defensa que se conforma en el ámbito cultural literario rioplatense, desconfiados por principio de toda tropicalidad e inclinados a adormecer con la ilusión de profundidad la melancolía de las grandes distancias de sus llanuras del desarraigo. Borges ya había descalificado el barroco con una ironía célebre: “ Es barroca la fase final de todo arte, cuando ellas e exhibe y extenúa sus recursos… cuando ella agota, o pretende agotar, sus posibilidades y limita con su propia caricatura.” Esto no quiere decir que el hecho de lo barroco no estuviese presente en las escrituras rioplatenses, y de un modo general, al interior del español, Ya se había hecho presente con Darío y Leopoldo Lugones lo seguiría desarrollando con la orfebrería de sus rimas. Por otro lado el neobarroco parece resultar del encuentro entre la marea barroca que es una constante en el castellano y la explosión del surrealismo. Esta poesía establecida y desarrollada con intensa fuerza en esa región, desciende del árbol genealógico de Lezama Lima, y no apuesta, como en el caso de las vanguardias, a un método único y/ o coherente d experimentación. Ni se reduce a los referentes políticos de la toma del poder o del combate contra el imperialismo. Pierde conscientemente los atributos posibles de la pureza, se ensucia, se mezcla, rompe los cánones, en momentos es coloquial, en otros recrea las imágenes con una meditada capa de neblina, la opaca, en otro caso, es metapoética. Trabaja tanto la sintaxis como los basamentos de los sonidos, las nociones filosóficas como la introducción universalizante de los localismos. Y pasa del humor al gozo. Como nos dice Roberto Echavarren, La poesía neobarroca es una reacción tanto contra la vanguardia como contra el coloquialismo más Portugal o menos comprometido. Las poéticas neobarrocas toman mucho de las vanguardias, particularmente su vocación de experimentación, pero no son bien vanguardias. Les falta su sentido de igualización militante de los estilos y su destrucción de la sintaxis. Se lanza esta expresión poética a reapropiarse del modernismo, recuperando a los uruguayos Herrera y Reissig y Delmira Agustini, entre otros. Una adecuada caracterización de la diferencia dentro del la expresión de lo barroco en las regiones geográficas y literarias está expresado por Hector Libertella, en estas palabras: Aquel movimiento común de la lengua española que tiene sus matices en el Caribe (musicalidad, gracia, alambique, artificio, picaresca, que convierten al barroco en una propuesta -”todo para convencer”, dice Severo Sarduy-) y que tiene sus diferentes matices en el Río de la Plata ( ¿ racionalismo, ironía, ingenio, nostalgia, escepticismo, psicologismo?) Una posible caracterización diferenciadora entre el histórico barroco del Siglo de Oro, el cual se establece sobre basamentos clásicos, el neobarroco carece, ante la dispersión de los estilos contemporáneos, de un plano fijo donde implantar su presencia. Si la vanguardista es una poesía de la imagen y de la metáfora, la poesía neobarroca promueve el enlace gramatical a través de una sintaxis a veces complicada. Pasan de un nivel de referencia a otro, sin limitarse a una estrategia específica, o a cierto vocabulario, Puede decirse que no tienen estilo, ya que más bien se deslizan de un estilo a otro sin volverse prisioneros de una posición o procedimiento. este es un ejemplo de un movimiento o corriente poético nacido y desarrollado en una región del subcontinente, pero que ha podido extender su cierta influencia o gusto a partir de un hecho socio político, que fue el exilio que parte de esos poetas realizaron hacia otros países. Después de las múltiples aventuras lingüísticas, de arrojarse de lleno al ámbito de las exploraciones comunicantes, los poetas más jóvenes de esta generación, ensayan en el espacio impugnador del texto rehacer, cambiar el mundo desde la escritura, desde un deslizamiento violento de los signos haciéndolo independiente de sus códigos. Es una forma de reescriturar lo hasta antes plasmado, la partitura es diferente, es encontrarse con un nuevo desnudamiento del signo, rompiendo ciertas ataduras con el logos comunicante, intentando buscar a un lector diferente, puesto que las varias lecturas no presumen a ese especie de gran lector, sino varios lectores, librados a su suerte y conformados a un especial abecedario. La búsqueda que los marcos del leer se amplíen demuestra e no sólo que la lectura no es s un fenómeno natural sino que ella se desplaza por el signo como su noción más libre: teje y destejen, arma y desarma de acuerdo con sus nuevos márgenes. Por otro lado, la narratividad en poesía, ciertos especialistas literarios expresan que ésta ocupa una posición marginal ante la presencia más canónica, reconocida, del fragmento, considerado como piedra de toque del repertorio formal de la vanguardia. Algunos plantean que esta narratividad es una respuesta ideológica usado en el marco de la tendencia negatoria de la historia. Ante esta negación conceptual la narratividad pasa a ser el sentido de la historia, esto es como si dijéramos: “la historia vista como transformación, como cambio, o motor de cambio, continúa en la narrativa, en el discurso, ya que en la vida es imposible”. En lo que a estética se refiere el discurso posmoderno absorbe la conciencia de que los lazos con el pasado están rotos definitivamente. Todas las formas y todos los tiempos están aquí. El pensamiento desencantado, el de un pensamiento sin salida ante la realidad social, legitima la consideración del fin de la historia pero autoriza volver al pasado en busca de los mejores de ese tiempo, lo que de esa forma posibilita retomar esos grandes momentos de un tiempo que nada tiene que ver con el pasado ni con un presente que pueda ser resultado del mismo. Se deshistorizan pasado y presente mediante la instalación de una medida, un canon, que hace único al pasado por considerar clausurado el futuro. Ese futuro, lo haría `potencialmente participante de una aparente improbabilidad de un cambio en lo social, pero, asimismo, ese futuro correspondería también al del silencio de la escritura. Desde esta perspectiva la narratividad poética corre el riesgo de ser la legitimadora, también ella de un discurso histórico vacío ya que la poesía, al contrario de la narrativa, se propone como transformación en sí misma, es una utopía del aquí. A partir de esta intención, punto de partida, el ideal del cambio histórico, bloqueado de cierta manera angustiosa en la práctica, se llevaría a cabo como una representación, la del deseo literario, en la poesía narrativa. Como en una especie de épica fundacional, de inicio. América Latina tiene tradición narrativa interrumpida por el modernismo de Rubén Darío, que abrió las puertas a la vanguardia. En este marco podemos definir que las dos líneas dominantes en la poesía latinoamericana que se produce en estos momentos son una inventiva y la otra restitutiva, una que sigue el espíritu de búsqueda de las vanguardias históricas y una que intenta un entronque con lo que se puede definir como poesía de la lengua, es la que mantiene, para mayor entendimiento, una mayor correspondencia con la tradición. Aunque, como se decía anteriormente, quizá haya entre estas dos expresiones centrales de la poesía en América Latina, un elemento nodal que los une, que es el de la búsqueda de un rasgo de estilo propio, de una poética que deba considerarse globalmente. Esta búsqueda puede encontrarse en la posible necesidad de transgresión de la poesía latinoamericana respecto de todo modelo, incluso el hispánico. Sin embargo, pese a la relatividad con que debe ser tomada la vanguardia, es en los poetas, en sus obras, donde encontramos la legitimación del nacimiento de nuestra poesía. Es por esto, que Eduardo Milán dice: “Preguntarse entonces, reconocer la poesía latinoamericana actual es preguntarse por la tradición latinoamericana de la poesía, brevísima, y reconocer en ella la importancia decisiva del impacto de las vanguardias. Si no se reconoce ese momento decisivo, si se considera a las vanguardias como “un momento más” de la poesía latinoamericana no estaremos hablando de lo mismo. Si no se toma conciencia de que la confirmación de nuestro nacimiento es para otros “una promesa de ruina”, si no se presiente en esa encrucijada una manera de la escatología, aunque citemos un catálogo de autores que certifiquen un más que sospechoso “dato de hecho” no estaremos hablando de poesía latinoamericana. Lo acertado sería no sólo leer los nombres de poetas como José Kozer, Luis Alberto Crespo, Eduardo Mitre, Raúl Zurita, Antonio Cisneros, Marosa di Giorgio, Jorge Boccanera, Roberto Echavarren, José Ángel Leyva, Marco Antonio Campos, Francisco Hernández, Tamara Kamenszain, María Baranda, y tanto otros, que forman parte del quehacer y acontecer poético del subcontinente, si no, básicamente leer su obra para ahondar y nadar sumergiéndonos en sus aguas, pero, no es éste el lugar ni el momento, por lo tanto, lo dejo, al deseo e interés inquisitivo y de búsqueda de los aquí presentes. Finalmente, para ahondar en esta realidad de la poética latinoamericana podemos cerrar y asimismo, abrir el pensamiento sobre su potencial y realidad, y quizá, lo encontramos en estas palabras de Vicente Huidobro, cuando escribe a su amigo y poeta español Juan Larrea: “Nosotros somos los últimos representantes irresignados de un sublime cadáver. Esto lo sabe un duendecillo al fondo de nuestra conciencia y nos lo dice en voz baja todos los días. De ahí la exasperación de nuestro pecho y de nuestra cabeza. Queremos resucitar el cadáver sublime en vez de engendrar un nuevo ser que venga a ocupar su sitio. Todo lo que hacemos es ponerle cascabeles al cadáver, amarrarle cintitas de colores, proyectarle diferentes luces a ver si da apariencias de vida y hace ruido. Todo es vano. El nuevo ser nacerá, aparecerá la nueva poesía, soplará en un gran huracán y entonces se verá cuan muerto estaba el muerto. El muerto abrirá los ojos y los hombres nacerán por segunda vez o por tercera o cuarta.” Esta breve introducción a la poesía contemporánea latinoamericana es sólo una aproximación, pues realmente, como dije anteriormente, queda pendiente el acercarse a leer los trabajos de los actuales poetas, que forman parte, en sus diferentes variables, de lo que puede llamarse una poética heredera de las vanguardias. Y que no sólo forman parte de las expresiones más jóvenes de algunos países latinoamericanos. Estos son el puente existente y la continuidad de ese mismo puente y camino de nuestra poética. ***** EDUARDO MOSCHES (Argentina, 1944). Poeta, editor, director de la revista Blanco Móvil. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Marcello Grassmann (Brasil) artista invitado de esta edición de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 FLORIANO MARTINS | Las llaves del deseo y el surrealismo en el siglo XXI - Diálogo con Amirah Gazel y Alfonso Peña Diálogo realizado en noviembre/diciembre de 2015, gracias a nuestra puente mágica, la virtualidad. Los idealizadores e curadores de la exposición Las llaves del deseo, la primera exposición internacional del surrealismo en Centroamérica, hablan de la dinámica en el montaje de la muestra que tendrá afortunado sitio en Costa Rica en marzo de este 2016. Es importante destacar lo relevante de esta iniciativa, sea por la actualidad vibrante del Surrealismo, sea por hacer presente en nuestro tiempo algo que por veces parece demasiado olvidado: el sentido de una aventura colectiva. A ver que dicen estos envidiables aventureros del azar, Amirah Gazel y Alfonso Peña. Ella, artista plástica. Él, narrador. Los dos, galeristas y editores. Abraxas FM | ¿Qué se está buscando con esta primera exposición internacional del surrealismo en Centroamérica? AG & AP | Buscar, lo que se puede llamar “buscar”, en realidad, no tenemos nada que buscar. Más bien, el origen de todo esto lo podemos rastrear en una zona neutra, en encuentros casuales y sorpresivos. Hasta hace un tiempo, los organizadores “no nos conocíamos” y fue más o menos desde el 2012 que intuimos y observamos muchos puntos de coincidencia, concordancias, nexos y ramificaciones que ambos tenemos con el surrealismo: organización de exposiciones internacionales, artistas amigos en común, contactos, revistas, editoriales, publicaciones de libros, antologías del surrealismo, estilo de vida surreal. Al encontrarnos años después (2014), y al compartir ideas y proyectos, comenzamos a jugar un juego de pelota, una especie de ping-pong cósmico, –como malabaristas–, y en un momento dado nos preguntamos, ¿por qué no realizamos una exposición del Surrealismo en Costa Rica y Centroamérica? Esta es la parte poética del encuentro. Posteriormente, por supuesto, llegamos a interiorizar, a profundizar el tema, y a sabiendas que en el Surrealismo, en sus orígenes está la magia, está todo ese mundo imperceptible, que no es tangible, esa magia que se encuentra escondida en la historia de Latinoamérica, de nuestros ancestros, pues que mejor lugar que Centroamérica, para poder generar una exposición que en estos momentos puede crear una unión internacional, porque las exposiciones surrealistas siempre son señales de manifestación de unión, a pesar de las querellas conocidas en el movimiento. Es asombroso, en menos de 6 meses, hemos reunido más de 100 artistas, 300 obras y 23 países, es una cosa maravillosa, creemos que ningún gobierno latinoamericano lo podría lograr. FM | André Bretón estaba de acuerdo con una sabia observación de Gurdijieff, de que “nada puede llevarse a buen término sin una organización”. ¿Qué se puede aclarar de la organización y estructura de esta exposición y cuál es la razón de su título? Agulha Revista de Cultura AG & AP | El movimiento surrealista siempre ha tenido autonomía en la organización, y eso es estupendo, en las diversas instancias nos autofinanciamos, publicamos nuestros libros de collages, de arte y de poesía, las ediciones numeradas y firmadas por los artistas, exponemos en nuestros espacios, para las diversas expos financiamos nuestros envíos, no nos preocupamos por los seguros de las obras, no hay aduanas, no existen las fronteras, en síntesis es una “realidad paralela”, una especie de mundo subterráneo, con una dinámica propia, un hilo invisible que amarra los diversos horizontes geográficos. La vie ne pas toujours en rose, también se dan “dificultades” con algunos países latinoamericanos, principalmente en la llegada de las obras, citemos un ejemplo: Argentina, donde el tema de los correos es muy complicado. Sin negar la cacería abierta tras el financiamiento del catálogo. Con respecto a la organización de la expo Las llaves del deseo, detrás de ella hay un buen andamiaje, experiencia, credibilidad, y todo eso suma positivamente, las obras llegan y regresan, habrá una semana de actividades culturales (lanzamientos de libros surrealistas, performances, recitales poéticos). Y por supuesto un catálogo impreso, nos gustaría tambien, uno digital, y así incluir el sonido para los no videntes, o casi, como nuestro amigo en común: Cruzeiro Seixas. Tenemos asegurada una muy buena infraestructura para la exposición que se llevará a cabo en la antigua capital del país, la ciudad de Cartago, y una serie de colaboradores muy importantes. Hay que recordar que el grupo Agorart/Camaleonart ha organizado varias exposiciones surrealistas internacionales con mucho éxito y cuenta con un amplio bagaje en el tema de la convocatoria, organización, logística y manipulación de obras de arte. El titulo Las llaves del deseo se dio en una búsqueda colectiva y llegamos al deseo porque es un evidencia de la época, es el motor que nos permite de movernos, la pulsión que nos inspira, y es fundamental en la psicología del ser humano, a pesar de lo difícil que es definirlo y es curioso porque el deseo mueve justamente la conducta del Ser, la humanidad está impregnada de deseos. El deseo ha sido siempre expresado desde otros ángulos por los surrealistas, visto desde un punto de vista erótico, es un segmento más freudiano; sin embargo, esta exposición toma un giro que añade lo “chamánico” en cada ser, un aire junguiano y es la presentación del deseo en otra dimensión. Visto con caleidoscopio. Si hacemos un recuento de las obras que han llegado a la exposición, nos damos cuenta que la temática es muy abierta y plural, llena de libertad creativa, en la búsqueda de cada artista, eso reafirma la filosofía de la expo. No obstante algunos han sido críticos con este título, lo han calificado de “cliché”, al mismo tiempo podemos sumergirnos y pensar que el surrealismo muchas veces ha sido calificado de “cliché”, aunque como se dice en algunos círculos: “el surrealismo es un cliché de calidad…” En este caso el deseo es una amplia gama de posibilidades, que puede girar y formar figuras, abstracciones, ensambles, mixturas, poemas, metáforas, romper fronteras, esquemas, viejos arquetipos abolidos. Es interesante que al observar las obras y las diversas propuestas, notamos que en un 70%, las mismas presentan muchas perspectivas y desarrollos espirituales, esotéricos, experimentales, inconscientes, más que erótico, sexual, símbolos sanadores. Para sintetizar, en esta exposición el deseo se muestra como un gran diafragma en forma de llave que abre un abanico inconsciente de múltiples variantes. FM | Mucho me atrae la idea de "un cliché de calidad" y estoy seguro que el arte de más intensa vibración espiritual es justamente aquel que ha sobrepasado esa distinción banal entre las dos caras de la misma moneda. Así que el deseo es una de las principales puertas de acceso al pensamiento mágico surrealista. Bueno, ¿es posible hablar un poco del montaje de la muestra? AG & AP | Floriano, a pesar de que es un mal augurio, “vender la piel de los lobos antes de cazarlos”, te diremos que será óptima y con muchas sorpresas. ¡A esperar que la noche será larga! FM | ¿Qué opinan Ustedes de la actualidad del surrealismo en una época increíblemente y demasiado fragmentada justamente por el exceso de medios y tecnologías? AG & AP | En el verano de 1964, André Breton conversaba con Octavio Paz, y durante la conversación que sostuvieron, el primero expresó: “Yo no estoy seguro si el mundo está empezando, o si se va a definir con afirmación o negación, pero lo que si se es que nosotros los surrealistas vivimos en una zona neutral y no necesitamos ni aprobar ni desaprobar absolutamente nada”. En realidad, Floriano, lo que está sucediendo en el planeta, ha sucedido siempre, solo que ahora, como vos lo dices muy bien, los medios de comunicación tienen tal dimensión de repercusión que acercan todo este tipo de información y desinformación, obligándonos a ser selectivos, creando como una especie de paranoia en el inconsciente colectivo y un acelere que en realidad no tiene nada que ver con esa realidad escondida del ser, que los surrealistas perpetuamente llamamos: la poética realidad paralela. Más bien una manifestación del surrealismo en este momento es como una llamada al orden del inconsciente, de los buenos observadores para refrescarles que hay otra dimensión que está fuera del tiempo y que no es afectada por todas estas situaciones terrenales, mundanas. Podemos agregar que la otra cara de las nuevas tecnologías nos favorece, mas allá de su atomización emocional, su información y su desinformación, más bien lo que hace es que estemos todos conectados de un modo cotidiano y virtual, y que ya no usemos la telepatía –como se usaba hace un tiempo– aunque existe todavía. Inclusive, nos llama la atención, que a través del mundo cibernético, hemos contactado para la expo muchos nuevos amigos, grupos, corpúsculos, células, que trabajan y pertenecen al surrealismo. Más bien esta moderna vía, nos ha revelado que el surrealismo es orgánico y que conforma una familia muy grande y que con el paso del tiempo se revitaliza y crece constantemente. Actualidad o no, contemporáneo o no, las nuevas tecnologías no afectan en nada a los surrealistas, es un fenómeno paralelo que lo usamos para intervenir creativamente. FM | Es verdad, además que los riesgos hacen de la vida un sitio mucho más sabroso. Recuerdo a Hugo Ball, en 1916, a decir que la falencia de las ideas había destrozado el concepto de humanidad. Ahora mismo tenemos un poco la idea de vivir un tiempo exánime, más propicio a la negación y destrucción, como hace un siglo ha pasado con el Dadaísmo. ¿Qué mundo estamos construyendo hoy en medio a las migajuelas del XX? AG & AP | Los seres humanos siempre crearon imperios que se han autodestruido, de igual modo la humanidad perpetuamente ha buscado la forma de autodestruirse; parece ser parte del desequilibrio necesario para crecer. Aunque estamos seguros de que el sufrimiento puede ser significativamente disminuido. Dramatizamos descomunalmente lo que sucede. Sin aportar soluciones, solo vemos los problemas, necesitamos ideas nuevas de pensamiento y acción, pero persistimos en deleitamos en el vaivén del culto al dolor, reforzando la impotencia, el sentimiento de culpa, quedando congelados, inactivos, perdidos en la distracción. A lo mejor utópicamente, saldremos en este “round” sintiéndonos, al fin responsables, justamente de este caos colectivo. Para comprender que somos una unidad. Por tanto, todo afecta a todos. El equilibrio que buscan a veces ciertas fuerzas o tendencias occidentales que se han adaptado a la moda de oriente y otras, conocido como el “new age” que nos vende un perfecto “nirvana”, el “mindfulness”, a través de primeros auxilios psicológicos, de inmediatez, para resolver una memoria arcaica que necesita de más de una vida para poder ser gigante, no corresponde a nuestra realidad occidental, ni a la realidad sola, son las armas que utilizan los buitres del consumo, los falsos profetas, los centros de alabanza, los supuestos elegidos, para continuar manipulando y solazando al ser para que se desvíe del camino de búsqueda hacia la esencia de si mismo. En medio de toda esa fermentación colectiva, algo parecido a un termómetro de mercurio, que va para todo lado… existe algo que es muy hermoso, nos referimos a “la poesía” a esa magia envuelta de AMOR que nos permite de crear un puente entre nosotros y la realidad, una “realidad paralela”, como lo hemos ya mencionado. Vivimos en medio de varias dimensiones (¡seis, ocho, nueve!) al mismo tiempo, pero no podemos verlas, nos las perdemos, porque tenemos que focalizarnos solamente en la realidad cotidiana, el dinero, pagar, pagar, pagar, comprar, comprar, llenarnos de basura cada vez más para envolvernos ya sea de grasa o de “chunches” inútiles y así no aceptar los pequeños y solos que somos. Enfermándonos aceleradamente como leprosos del espíritu, creando más y más angustia para reflejarla en el inconsciente colectivo, produciendo más desajustes emocionales. Una era de culto a la mediocridad, mediocridad en la educación, en la salud, en la política, mediocridad espiritual, MEDIOCRIDAD, MEDIOCRIDAD. Cada persona de un modo individual construye lo necesario y a buen desarrollo individual, óptimo colectivo. ealismo em En relación con el tema de la “construcción”, que vos Floriano, ponés sobre el tapete, nos parece que se presta a muchas divagaciones y respuestas. ¿Hacia dónde se dirige la humanidad? Hacia su propio encuentro, suceda lo que suceda; sin embargo, si nos cruzamos de brazos y dejamos que continúe “la fanfarria”, de “arquetipos” degastados y obsoletos, políticos, sociales y culturales, no cabe duda que marcharemos inexorablemente a la autodestrucción, y que quizá tal vez tengamos el privilegio de “vivirlo”. En síntesis, nada ha cambiado desde la guerra de 1914, cuando nace Dada, con los acontecimientos de estos días. La diferencia está en que ahora las naciones cuentan con armas de destrucción masiva. Que desde hace mucho tiempo se viene deteriorando el ser humano a través de tácticas psicológicas y de eliminación en dulce. Pero es indagador, a la vez tenemos capacidad pública de conocimiento sobre las fuerzas interiores más amplias que en el inicio del siglo XX. Le podemos dar vuelta al tema y traerlo a la exposición Las llaves del deseo, decir más que construir, ¡qué curioso!, ¿qué es lo que reúne a toda esta gente, en momentos de tanta controversia? El Surrealismo es un movimiento que nació en guerra y se manifiesta con grandeza en el mundo de un modo mágico. Por lo general en momentos de conflicto. ¿Pero alguna vez, salió la humanidad del conflicto? En este momento hay un gran embrollo global (guerra santa, migraciones) y los surrealistas nos manifestamos reuniendo las obras de artistas de 23 países. Más que preguntar ¿qué construimos?, deberíamos preguntar ¿qué es lo que nos une, que es lo qué hace que nos encontremos a través de los diferentes países, sin fronteras, sin aduanas, sin seguros, en medio de las llamas, o de los diversos fenómenos? Recordemos cuando Enrique de Santiago organizó el Umbral Secreto, en Chile: la bienvenida para la expo surrealista fue un terremoto de gran intensidad. ¡Los surrealistas en medio de un fenómeno telúrico, y todos ilesos! Es curioso, nos parece, con respeto, que la pregunta sería conveniente redirigirla hacia ese sentido. FM | ¿Los dos creen, como defendía Aldo Pellegrini, que el hombre y la realidad son dos procesos que transcurren en paralelo de algún modo destinados a la imposibilidad de un encuentro? AG & AP | Si nos enlazamos al pensamiento de Aldo –que dejó una serie muy importante de testimonios y documentos sobre el Surrealismo–, encontramos mucha correspondencia con la pregunta. El hombre y la realidad son dos procesos separados, pero conjugados en una “realidad paralela”, y la “imposibilidad de un encuentro” suena a algo poético y el proceso se hace efectivo en la realidad paralela. Hay que tomar en cuenta que Pellegrini poseía un espíritu libertario y crítico, y comulgaba con la “explosión interior del espíritu” proclamado y exaltado por los surrealistas y en especial Antonin Artaud. Aldo construyó un mundo aparte, una especie de realidad paralela, en la que estaban acoplados sus amigos del grupo surrealista argentino. Y estuvo en oposición con los “símbolos acomodados en el sistema”, como eran Borges y Bioy Casares, que se mofaban de las propuestas y del pensamiento que proclamaba Aldo; y la respuesta de Pellegrini, era proyectar una serie de señales luminosas y libertarias desde sus revistas surrealistas que ignoraban y cuestionaban a esos hacedores de literatura argentina. Pellegrini, indagó en todas las formas de la realidad: “lo absurdo”, “lo mágico”, “lo irreal” y conformó un pensamiento de avanzada y claridad, que muchas veces estaba en oposición al Surrealismo dogmático. Aldo exploró todas esas posibilidades para imaginar y confirmar que son dos procesos y es justamente en esa “realidad paralela” donde se permite observar una riqueza de pensamiento, una herencia en plena efervescencia. Aldo Pellegrini, y su grupo surrealista, marcaron un camino muy importante en el desarrollo del Surrealismo americano, más vital, mágico y ancestral. Deseamos subrayar que es muy importante estudiar a Aldo Pellegrini y que su obra merece una relectura y redescubrimiento permanente de todos nosotros. FM | ¿Qué otros planes los dos alimentan seguir trabajando después de esa muestra? AG & AP | Flor, si salimos con vida de esta expo y logramos no ahogarnos en ese mar proceloso, porque vamos nadando contracorriente como toda manifestación surrealista, y si el “caleuche” no colapsa, quizá nos animemos en el futuro a “soñar” con una expo de automatismo colectivo. FM | ¿Olvidamos algo? AG & AP | ¡Que brindemos con las copas dadas vuelta –como dice Roberto Juarroz– porque arriba y abajo es lo mismo! ¡Y nos vemos en Cartago, 2016! ¡¡¡¡Auu Auuuuuuuuuuuu!!!!! ***** Página ilustrada con obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 HAROLD ALVARADO TENORIO | De sobremesa, la única novela de José Asunción Silva Miguel Cané [En viaje, Buenos Aires, 1884.] dejó un retrato de Bogotá en mil ochocientos ochenta y dos. Al llegar a la capital, durante el primer gobierno de Rafael Núñez, vio la plaza de San Victorino, un viernes, día de mercado. Una multitud de indios impide el paso al carruaje: “mirar uno es mirar a todos. El eterno sombrero de paja, el poncho corto hasta la cintura, los pantalones anchos, a media pierna, y descalzos”. Bogotá tiene calles estrechas, casas bajas, un caño rodeado de gallinazos, un Jockey Club, la plaza de Bolívar (“un cuadrado de una manzana, sin un árbol, sin bancos, frío y desierto”), un square Santander, setenta mil habitantes, leprosos, iglesias y el Altozano, donde se reúne la crème de la crème: Altozano es una palabra bogotana para designar simplemente el atrio de la catedral». Allí se habla de literatura, política, negocios, levantamientos: ”una bolsa, un círculo literario, un areópago, una coterie, un salón de solterones, una coulisse de teatro, un forum, toda la actividad de Bogotá en un centenar de metro cuadrados” . Cané conoció algunos de los intelectuales de la época: Diego Fallón, “el inimitable cantor de la luna vaga y misteriosa”; José María Samper que “ha escrito seis y ocho tomos de historia, tres o cuatro versos, diez o doce novelas, otros tantos de viajes, de discursos, de estudios políticos, memorias, polémicas”; Rafael Pombo, “un hombre que ha hecho soñar a todas las mujeres americanas con unas cuartetas vibrantes como las quejas de Safo”; José María Marroquín, los hermanos Cuervo, Camacho Roldán, Alberto Urdaneta, Ricardo Silva, padre del poeta, y Miguel Antonio Caro, ”que ha venido a aumentar la falange humana en suelo colombiano, su espíritu ha nacido, se ha formado y vive en pleno Madrid del siglo XVI .” Aunque no comparte sus ideas políticas conservadoras, le fascinan sus habilidades para improvisar, y cita a Pombo y a Gutiérrez González como ejemplo de espontaneidad con el verso: ¡Fáciles!… he aquí el rasgo característico de los colombianos. No es posible imaginarse una habilidad semejante. Aturden. Confunden. En una mesa, cuando, a los postres, el vino aviva la inteligencia y la alegría común hace chispear el cerebro, !qué irrupción de cuartetas, décimas, quintillas! Eso es bogotano puro. La facilidad, la precisión, la soltura del verso. En el ochenta y dos sólo faltaban tres años para que Núñez anunciara, después del combate de La Humareda, que la constitución de Ríonegro había dejado de existir. Silva tenía dieciséis años. A los dieciocho viajaría a París y Londres, para regresar en el ochenta y cinco. En plena juventud conoció el mundo europeo y sus rápidos cambios sociales y culturales y fue testigo del triunfo de la civilización frente a la barbarie, y el comienzo de una larga noche de persecuciones políticas y de craks financieros que favorecieron la aparición de los monopolistas. La más feroz de las castas colombianas se entronizó en el poder, de donde saldría, por un momento, medio siglo más tarde, con la llegada al gobierno de Olaya Herrera. Entre mil ochocientos ochenta y mil novecientos treinta, dice Germán Téllez [La arquitectura y el urbanismo en la época republicana, en Manual de historia de Agulha Revista de Cultura Colombia, Tomo II, Bogotá, 1980, págs., 469-563.] surgió una clase proletaria para cuya presencia nadie estuvo preparado y cuya irrupción en la vida tuvo hondas consecuencias de todo orden. El país que Núñez pudo arruinar, era, por supuesto, analfabeta. Ese país y su educación lo vendieron los Reformadores a la iglesia con la constitución del ochenta y seis y el concordato del ochenta y siete. El artículo 38 de la primera dice: La religión católica, apostólica y romana es la de la nación. Los poderes públicos la protegerán y harán que sea respetada como elemento esencial del orden social. Y los artículos 12 y 13 del concordato ordenan: En las universidades y en los colegios, en las escuelas y en los demás centros de enseñanza, la educación e instrucción pública se organizará y dirigirá en conformidad con los dogmas y la moral de la religión católica. La enseñanza religiosa será obligatoria en tales centros y se observarán en ellos las prácticas piadosas de la Religión Católica. Por consiguiente, en dichos centros de enseñanza los respectivos ordinarios diocesanos, ya por sí, ya por medio de delegados especiales ejercerán el derecho, en lo que se refiere a la religión y a la moral, de inspección y de revisión de textos. El arzobispo de Bogotá designará los libros que han de servir de textos para los demás planteles de enseñanza oficial. El gobierno impedirá que en el desempeño de asignaturas literarias, científicas y, en general, en todos los ramos de la instrucción, se propaguen ideas contrarias al dogma católico y al respeto y veneración debidos a la iglesia. El triunfo de la religión sobre la vida y la cultura fue de tal magnitud que, como en una resucitada Edad de la Fe, medio millar de templos, algunos de proporciones catedralicias, fueron levantados sobre el paisaje de un país que llevaba más de dos siglos luchando contra el feudalismo. En noventa años, dice Téllez, “se construyó tanta o más arquitectura religiosa que en todos los tres siglos de la colonia”. El año de la expedición del concordato murió el padre de Silva. Cuatro años más tarde, en mil ochocientos noventa y uno, después de la muerte de Elvira, al publicar Nocturno, Silva se convirtió en uno de los inventores del Modernismo. No sabemos cuándo redactó Silva De sobremesa, pero tuvo que reescribirla después del naufragio del Amérique (28 de enero de 1895), donde perdió los originales de sus obras. José Fernández dice que hace ocho años compuso el diario que lee a sus amigos, lo que indica que Silva habría venido trabajando en la novela por varios años, pero dado que el poeta murió en mayo del ochenta y seis, podemos conjeturar que la composición final fue su último desafío y que trabajó, compulsivamente, durante esos cuatro meses. Recogida por la pantalla de gasa y encajes, la claridad tibia de la lámpara caía en círculo sobre el terciopelo carmesí de la carpeta, y al iluminar de lleno tres tazas de China, doradas en el fondo por un resto de café espeso, y un frasco de cristal tallado, lleno de licor transparente entre el cual brillaban partículas de oro, dejaba ahogado en una penumbra de sombría púrpura, producida por el tono de la alfombra, los tapices y las colgaduras, el resto de la estancia silenciosa. Así comienza la novela, cuyo argumento puede resumirse de esta manera. José Fernández es un figurín, que luego de vivir por años en Europa, regresa a su país. Durante una tertulia de sobremesa acepta leer para sus amigos para leer el diario donde relata su estancia en el viejo continente. Allí describe cómo, tras una vida dedicada a la sensualidad y el placer, termina obsesionándose con Helena, una adolescente a quien ve de paso en un hotel suizo, y convierte en la personificación idealizada de sus deseos más puros. Luego de una larga búsqueda, descubre que Helena ha muerto, cayendo en una extraña enfermedad nerviosa y tras recuperarse retorna desencantado a su país. En la trama Silva usa de muchos tópicos de su tiempo y su clase, como la preocupación por el mas allá y los asuntos de la ciencia y el positivismo de entonces. Quizás el más interesante de estos elementos “extraños” a la trama sean las reflexiones que hace sobre el futuro de su país y el esbozo de un proyecto político que resume muchas de las ideas en boga acerca del progreso y la necesidad de oponer la civilización a la barbarie. Liberal, Fernández quiere aumentar su fortuna y la de la patria mediante la exportación de materias primas y piensa visitar los Estados Unidos para luego de aprender en el sitio las razones de su prodigioso progreso regresar y aplicarlas, así sea mediante la fuerza y la rotura del orden establecido. Una economía del libre cambio, fomentando la minería, la agricultura y el desarrollo de las industrias, en resumen, un proyecto político y social hecho casi a la medida de Rafael Nuñez. Silva puso en Fernández rasgos de su personalidad y abundante autobiografía, al tiempo que hace de sus deseos sueños del protagonista. Fernández, más que un retrato del autor es su mejor delirio. Rico, hermoso, poeta, vive rodeado de refinamientos y lujos pero es víctima de un suplicio de Tántalo: querer, tener y saberlo todo. En plena juventud, Fernández ha agotado los caminos que conducirían a la felicidad. Es que como me fascina y me atrae la poesía, así me atrae -dice a sus amigos- y fascina todo, irresistiblemente: todas las artes, todas las ciencias, la política, la especulación, el lujo, los placeres, el misticismo, el amor, la guerra, todas las formas de la vida, la misma vida material, las mismas sensaciones que por una exigencia de mis sentidos, necesito de día en día más intensas y delicadas. Esta ansiedad le ha llevado a estudiar lenguas vivas y muertas, filosofías, historia, las formas del arte a través del tiempo, probar drogas y saciar el fuego en multiplicidad de cuerpos ganados con engaño o con dinero. Una de las metáforas más interesantes de la novela la descubre el lector al saber cómo el pasado de Fernández podía ser un presente de Silva. Por ese camino llegan, soñador y soñado, a despreciar el arte, la literatura y la fe en el destino. Sólo los placeres que ofrece la carne, los negocios y el enriquecimiento fácil son válidos: su hambre de poder es incontenible. La búsqueda de la belleza y de las formas es un camino más en la obtención del poder. El plan para dominar un país, que como telón de fondo frente al escenario de los viajes y las ciudades europeas aparece en la novela, resultó historia: Núñez llegó al poder y permaneció en él hasta su último suspiro, usando los planes, tácticas y estrategias con que sueñan Fernández-Silva. El José Fernández que se parece a María Bashkirtseff es el joven recién llegado a Europa, que cree en el poder del arte para expresar las visiones que la vida cotidiana impide contemplar. La escritora, que había muerto dos años antes del suicidio de Silva, es para Fernández , pero también el ejemplo superior de una vida asumida como encuentro con los placeres, recurso ineludible para ser parte del universo. María Constantinova había nacido en Rusia cinco años antes que Silva. Muerta en el ochenta y cuatro, el mismo en que el poeta bogotano llegó a París, es uno de los casos más fascinantes de la historia artística y literaria. A causa de la separación de sus padres, la madre y la niña se trasladaron a Niza cuando María tenía siete años y allí aprendió a leer en latín y griego, estudió música y pintura, hasta terminar siendo uno de los objetos amados del París decadente. Muerta a causa de cierta clase de tuberculosis, en su diario, (Journal de Marie Bashkirtseff, 1887), y en sus cartas con Maupassant, nos encontramos con esa niña que pasma a Fernández-Silva. A los veintiséis años, Fernández es un cuerpo en busca de placer y es Silva al encuentro de los sueños eróticos que vislumbró y bebió en Europa y sin duda sació en Caracas. Ambos sueñan con un . Sin que la consciencia de saberse en un mundo escindido le sea negada: No eres nadie -se dice-, no eres un santo, no eres un bandido, no eres un creador, un artista que fije sus sueños con los colores, con el bronce, con las palabras o con los sonidos; no eres sabio, no eres un hombre siquiera, eres un muñeco borracho de sangre y fuerza que se sienta a escribir necedades… Ese obrero que pasa por la calle con su blusa azul lavada por la mujercita cariñosa y que tiene las manos ásperas por el duro trabajo, vale más que tú porque quiere a alguien, y el anarquista que guillotinaron antier porque lanzó una bomba que reventó un edificio, vale más que tú porque realizó una idea que se había encarnado en él. Eres un miserable que gasta diez minutos en pulirse las uñas como una cortesana y un inútil hinchado de orgullo monstruoso. Fernández tiene el coraje de mostrarnos los misterios que han encontrado los críticos en Silva. De sobremesa está construida como una confesión que ilustra el desarrollo de la personalidad del autor. Siguiendo el texto encontramos un Fernández que a los veintiuno es un artista enamorado de lo griego, que desprecia la vulgaridad de la vida moderna; un filósofo descreído, un cínico, un gozador cansado de los placeres vulgares, y que busca, como una gota que vuelve, sensaciones más hirientes y finas, y a un analista que discrimina, hasta el agotamiento, todas sus sensaciones y conocimientos. Fernández-Silva sabe verse al espejo. En un lapso de cinco años, a los veintiséis, cuando redacta el diario, su lucidez es total: no hay para qué buscar nuevos paraísos, la búsqueda del yo ha concluido. El primero de septiembre, después de una opulenta fiesta ofrecida por le richissime américain don Joseph Fernández et Andrade, Silva anota: ¿Qué me importa el éxito de la fiesta si mi lucidez de analista me hizo ver que para mis elegantes amigos europeos no dejaré de ser nunca el rastaquouère que trata de codearse con ellos empinándose sobre sus talegas de oro; y para mis compatriotas no dejaré de ser un farolón que quería mostrarles hasta donde ha logra insinuarse en el gran mundo parisiense y en la high-life cosmopolita? ...................................................... Neotomismo de Tolstoy, teosofismo occidental de las duquesas chifladas, magia blanca del magnífico poeta cabelludo, de quien París se ríe; budismo de los elegantes que usan monóculo y tiran florete; culto a lo divino, de los filósofos que destruyeron la ciencia; culto del yo, inventado por los literatos aburridos de la literatura; espiritismo que cree en las mesas que bailan y en los espíritus que dan golpecitos; grotescas religiones del fin de siglo diecinueve, asquerosas parodias, plagios de los antiguos cultos, dejad que un hijo del siglo, al agonizar de este, os envuelva en una sola carcajada de desprecio y os escupa la cara!» A pesar del fraude de la realidad, Fernández se realiza en el placer, y en la búsqueda de la felicidad que representa una Helena hecha de trozos de rostros de jóvenes prerrafaelitas. Fernández da rienda suelta a sus fuerzas y experiencias cuando comercia con mujeres, sin importar su condición, nivel social o cultura. El cuerpo, la humedad de la carne es lo que importa. María Legendre, hija de un zapatero borrachín y una pobre mujer; que había sido amante de ocasión de un ex presidente suramericano, le ofrece el recuerdo de: caricias lentas, sabias e insinuantes de aquellas manos delgadas y nerviosas, la lascivia de aquellos labios que modulan los besos como una cantatriz de genio modula las notas de una frase musical. Oh, el refinamiento de sensualidad, la furia del goce, la gravedad casi religiosa de todos los minutos consagrados al amor, como si en vez de tener de él la miserable noción moderna que lo relega al dominio de lo inmundo, lo sintiera ella grave y noble como una función augusta. La lesbiana Orloff, que al ser encontrada entrelazada con su amante, el produce un ataque de furia donde intenta matarla, hace que escriba: Yo, el libertino curioso de los pecados raros que ha tratado de ver en la vida real, con voluptuoso diletantismo, las más extrañas prácticas, inventadas por la depravación humana, yo, el poeta de las decadencias que ha cantado a Safo la lesbiana y los amores de Adriano y Antinoo en estrofas cinceladas como piedras preciosas? ¿ Celos? Sería grotesco… ¿ Odio por lo anormal? … No, puesto que lo anormal me fascina como una prueba de rebeldía del hombre contra el instinto. o Nini Rousset, con quien después de haberse “prodigado los más groseros insultos, con toda la excitación del alcohol en el cuerpo, entremezclándolos con caricias depravadas” piensa en ahogarla entre las sábanas; o la americana Nelly, conseguida a cambio de un collar de diamantes, o la colombianísima Consuelo, víctima del casto José, todas ellas representan una fuente más valiosa de sensaciones que las del mismo arte o las provocadas por las drogas: “nadie seduce a nadie, dice Fernández. Si es la idea del placer la que nos seduce… Tan ardiente era el deseo en ellas como en mi” . No ha de creerse que este mundo, sacado de la vida real y las novelas de finales de siglo, era extraño a los bogotanos. Ni la sensualidad, ni el refinamiento, ni los avances de la ciencia eran ajenos a los capitalinos. Cané se asombra al encontrar, después de haber recorrido largos trechos a lomo de mula, y dormido en posadas medievales, una ciudad “de refinado gusto literario, de exquisita civilidad social y donde se habla de los últimos progresos de la ciencia como en el seno de una academia europea” . La descripción de las apariencias y la realidad del Bogotá finisecular son ejemplares: Llegaba al frente de una casa de pobre y triste aspecto, en una calle mal empedrada, por cuyo centro corre el eterno caño; salvado el umbral, ¡qué transformación!. Miraba aquel mobiliario lujoso, los espesos tapices, el piano de cola de Erhard o Chickering y, sobre todo, los inmensos espejos, de lujosos marcos dorados, que tapizaban las paredes, y pensaba en el cambio de Honda a Bogotá, en los indios portadores, en la carga abandonada en la montaña, bajo la intemperie y la lluvia, en los golpes a que estaban expuestos todos esos objetos tan frágiles. Menciona, de paso, la casa de Ricardo Silva como lugar habitual para partidas de tresillo y recuerda, cómo, la mayoría de las familias pudientes habían viajado a Europa, especialmente a París: No me olvidaré nunca de aquellas deliciosas comidas en casa de don Diego Suárez, cuyo hogar hospitalario me fue abierto con tanto cariño. Nunca éramos menos de quince o veinte, y desde el primer plato, la mesa era una arena para el espíritu de los concurrentes. ¡Qué animación! ¡Cómo se cruzaban las ocurrencias más originales e inesperadas! También, ¡cómo esperar que en Bogotá encontraría una obra maestra como la bodega del señor Suárez! Los vinos elegidos por él en Europa habían triplicado de valor en su larga travesía, y cuando los degustábamos, sentíamos que aquel chisporroteo de espíritus nos impedía entregarnos a esa grave tarea con la seriedad necesaria. Pero, ¿cómo hacer? Los postres servidos, todo el mundo saltaba por dejar la mesa. Cuando llegábamos al salón, una joven estaba ya sentada al piano ¿cuál de ellas no es música?-, los balcones abiertos nos invitaban a gozar de la caída de una de esas tardes frescas y serenas de la Sabana, los grupos se organizaban, llegaba el momento de las charlitas íntimas y deliciosas, y cuando las sombras venían, comenzaba la sauterie improvisada, el bambuco en coro, la buena música, todos los encantos sociales, en una atmósfera delicada de cordialidad y buen tono. Silva tenía conciencia de la época de transición que vivía, entre la sociedad de peones, fisiócratas y caudillos, y la capitalista con sus obreros, artesanos y hombres de estado que daba golpes al pasado. Una Santafé que agonizaba y un Bogotá que alcanzaría su grosero afrancesamiento bajo la dictadura de Reyes. En un prólogo que escribió para un libro de homenaje a un monje, describe las diferencias entre: … un Santafé dormilón, inocente y plácido de 1700, un pedazo de la vieja ciudad de la mula herrada, del espanto de la calle del Arco y de la luz de San Victorino, y el lujo de la Bogotá de hoy, de la ciudad de las emisiones clandestinas, del Petit Panamá y de los veintiséis millones de papel moneda. ¿No vienen siendo -se pregunta Silva-, las dos figuras, la del padre León y la del ministro X, como los dos polos de una ciudad que guarda en los antiguos rincones restos de la placidez deliciosa de Santafé y cuyos nuevos salones aristocráticos y cosmopolitas y cuya corrupción honda hacen pensar en un diminuto París?. Como se sabe, Silva nació en el hogar de un rico comerciante cuya prosperidad dependía del auge de los artículos de lujo y del laissez faire, laissez passer. Hizo estudios de primaria en un colegio privado cuyos profesores eran los representantes de una literatura seminacionalista, interesada en encontrar el »verdadero» rostro del pasado nacional, frente a la novedad de las costumbres y literaturas francesa e inglesa. Manuela de Eugenio Díaz; Memoria sobre el cultivo del maíz en Antioquia de Gregorio Gutiérrez González; Historia de la literatura de la Nueva Granada de José María Vergara y Vergara, y los innumerables cuadros de costumbres de Guarín, Kastos, Soledad Acosta y el padre de Silva, fueron las contribuciones colombianas a una corriente literario-ideológica que conoció cumbres como María y Martín Fierro, prosa y verso donde una clase social latinoamericana necesitaba ver, en la barbarie, un digno antepasado. En el almacén de Ricardo Silva, el poeta debió escuchar las discusiones que en torno al tema harían los redactores de El Mosaico. Allí, más que en la escuela de Ricardo Carrasquilla, debió aprender las primeras lecciones de un liberalismo económico que surgía de mentes conservadoras, en una de las épocas más convulsionadas de la historia de Colombia, donde, entre mil ochocientos sesenta y tres y mil ochocientos ochenta y cinco hubo más de cincuenta insurrecciones locales y cuarenta y dos constituciones, aparte de la guerra civil de 1876 a 1878. La adolescencia de Silva tuvo que estar marcada por esas luchas políticas entre comerciantes y artesanos; entre el libre cambio y el proteccionismo. Desde la niñez Silva conoció los dos polos entre los cuales se debatiría su vida: el dinero y los libros. En Bogotá lo más importante era ser, primero comerciante, y luego, hombre bien educado. Según Miramón [Ensayo biográfico, Bogotá, 1937-1957.] la casa de Ricardo Silva «era notable no solo por la prestancia social y la indiscutida cultura y belleza de las personas que la componían, sino también por el lujo y el refinamiento casi exagerados, o mejor dicho, por el boato excesivo. Allí los muebles, la vajilla, todo era extranjero». Los nuevos comerciantes eran retardatarios en ideas y moral pero no en buen vivir. En toda América se vivió un clima de opulencia entre los comerciantes. De elementos progresistas y radicales, se convirtieron en enconados enemigos del cambio social. En coautores de los fracasos políticos que impidieron a nuestras sociedades defenderse de las garras del imperialismo que crecía en los Estados Unidos tras el triunfo yanqui en la guerra civil en 1865. Al cumplir los dieciocho Silva fue enviado a Europa para estudiar la posibilidad de ensanchar los negocios familiares. Los meses que gastó en París y Londres fueron suficientes para quedar intoxicado con las ideas y los vicios, que como un mal del siglo, circulaban al son de las canciones de anarquistas y revolucionarios. La novela de Silva es prueba de ello. A principios del ochenta y seis regresó a Bogotá, donde redactó algunos de los poemas que aparecieron en La lira nueva. Un año más tarde morirá su padre, y vendrá para Silva la peor época de su vida, si a las cincuenta y dos ejecuciones judiciales por deudas, sumamos la desaparición de Elvira en el noventa y uno. En diez años, entre el ochenta y cinco y el noventa y cinco, Silva escribió los textos más dolorosos e irónicos de su obra y su tono fue cambiando a medida que se acercaba a la muerte. Desde su retorno a Bogotá, la contradicción que tuvo que enfrentar fue producto de sus ideales de grandeza y la mezquindad del medio. El artículo de Camilo de Brigard [El infortunio comercial de Silva, en Revista de América, nºs 17-18, Bogotá, mayo-junio, 1946.], sobre los fracasos comerciales de su tío, muestra detalladamente el desarrollo de su tragedia. Todos los lujos que se criticaron en Silva son pocos ante la angustiosa vida diaria que tenía que enfrentar. Una vez arruinado, el gobierno le nombró en un cargo diplomático. En Caracas, la vida pareció abrirle nuevas ventanas. Las gentes cultas le recibieron con entusiasmo, las mujeres lo halagaron, las revistas le invitaron a colaborar. «Aquí me han recibido, escribió a Emilio Cuervo Márquez en mil ochocientos noventa y cuatro-, como no merezco; no sé cómo hacer para devolver atenciones y bondades y fiestas. El país va bien, rebosa en oro, tiene el sentimiento del arte y adora la buena literatura. En Bogotá hay muchos que creen lo contrario en lo referente a los dos últimos puntos; pues bien, están equivocados de medio a medio». La muerte de Núñez, y el ofrecimiento de Caro de un puesto inferior en Guatemala, hicieron que Silva regresará a Bogotá. Volvió lleno de entusiasmo y con la cabeza atiborrada de planes industriales. Pero fracasó. Nadie quiso creerle, a pesar de los esfuerzos que hizo por mostrar que se había reformado, que ya no era más un poeta sino un hombre de empresa. No obstante, su desprecio por el pragmatismo se había acentuado. En una carta a Rosa Ponce de Portocarrero dice: Es que usted y yo, más felices que los otros que pusieron sus esperanzas en el ferrocarril inconcluso, en el ministro incapaz, en la cementera malograda o en el papel moneda que pierde su valor, en todo eso que interesa a los espíritus prácticos, tenemos la llave de oro con que se abre la puerta de un mundo que muchos no sospechan y que desprecian otros; de un mundo donde no hay desilusiones ni existe el tiempo; es que usted y yo preferimos, al atravesar el desierto, los mirajes del cielo a las arenas movedizas, donde no se puede construir nada perdurable; en una palabra, es que usted y yo tenemos la chifladura del arte, como dicen los profanos, y con esa chifladura moriremos. Lo que le llevó sin duda a tomar partido por el naciente proletariado capitalino y por las ideas de Rafael Uribe Uribe. En su leyenda ha quedado escrito que terminó en el secretariado general de los Centros Mutuarios, herederos de las Sociedades Democráticas, considerados abiertamente subversivos, como lo afirma un artículo anónimo aparecido en la revista Gil Blas (nº 2541, Bogotá, mayo 24, 1920, pgs 1-2), titulado Silva bolchevique. De su amistad y admiración por Uribe quedaron dos cartas. ***** HAROLD ALVARADO TENORIO (Colombia, 1945). Poeta, ensaísta, tradutor. Dirige a revista Arquitrave. Autor de um livro fundamental para compreender a lírica colombiana: Ajuste de cuentas (2014). Contato: [email protected]. Página ilustrada con obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 ... AGULHA Fase I 1999-2009 Editor Assistente | CLAUDIO WILLER 1999-2015 • Agulha Revista de Cultura, Floriano Martins - Fortaleza CE Brasil. Modelo Awesome Inc.. Imagens de modelo por bopshops. Tecnologia do Blogger. Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 LEONTINO FILHO | As esquinas alegóricas da cidade: um olhar Olhar bem. Viajar. Cair na desmedida condição do flâneur. Anunciar as regras do jogo. Exercitar–se. Entrar no sonho que leva ao gozo: o real. Participar do mundo afetivo, indiferente às armadilhas da paixão: ser ausente, estando próximo. Descortinar o doce perigo das simulações, inverter a lógica da razão: subjetivar o concreto. Partir. Mergulhar no furor do silêncio e abalar cada milimétrica estrutura do estabelecido universo das certezas. Anular a passividade, construir seduções por meio da fome contínua do ilimitado. Devorar o caos, dissimulando sombras: embaralhar as cartas. Chegar. Lançar-se aos abismos, verticalizando a beleza. Escalar imagens. Desenhar no espelho o cristal e a chama e com isso reparar que toda inocência jaz estilhaçada num mar de palavras. Com a cidade, propor vôos. Assim faz Italo Calvino em seu livro As cidades invisíveis. A obra, de enredo aparentemente simples, é na realidade a síntese de uma produção literária elaborada com extremo rigor e total domínio do processo narratorial. O autor realiza a confluência do clássico com o moderno, configurando um estilo requintado, dando vazão a uma biografia lírico-sentimental, porém jamais piegas, da cidade. Através do narrador-memorialista Marco Polo, explorador veneziano que dialoga com o imperador tártaro Kublai Khan – em determinados momentos do romance, também narrador –, Italo Calvino multiplica as vozes que tecem o imaginário das maravilhas da cidade. Com o relato ambientado no Extremo Oriente (século XIII), podemos acompanhar a densidade e a precisão com que o escritor-viajante opera as suas fabulações, esta miragem sedutora e sensual: a palavra-cidade. No nosso breve ensaio, procuraremos ler com olhos livres o texto-invenção da cidade, percebendo, acima de tudo, que a escritura calviniana, propõe-se a acentuar as diferenças de estilo, apresentando os seus intrincados enredos como verdadeiros relatos labirínticos do ato de narrar. Para nós, um tipo de narrativa que busca redefinir os espaços que aproximam os diferentes gêneros textuais, no instante em que percorre a fantasia, reduplica a realidade e instaura um registro ficcional centrado na desestabilização de perspectivas e, principalmente, na instabilidade de sentidos que gera um novo mundo, em que a verdade será alvo de ataques constantes. Tudo é visto de viés, cada relato constitui desdobramentos discursivos e toda ação está enquadrada na voz lírica e ficcional do narrador. As estratégias narrativas operacionalizadas por este narrador projetam uma preocupação com o estabelecimento ontológico em aberta oposição ao meramente epistemológico. O conhecimento é, a partir de então, algo que está sempre à deriva e sujeito às intempéries do narrador. O dar a conhecer em As cidades invisíveis plasma a percepção e a concepção das coisas: o amor e o desamor, o tempo e a eternidade, a perdição e a salvação, a carne e o espírito, entre outras, são substratos mágicos e míticos que permeiam o mundo lírico-subjetivo que, por não obedecer a uma hierarquia de sentidos, multiplica a matéria a ser narrada. A matéria com a qual Italo Calvino trabalha está plenamente ajustada às cinco qualidades do seu ideário escritural: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Na feitura de uma escrita Agulha Revista de Cultura literária, a cidadela do artista necessita, de imediato, esvaziar o peso do mundo e da linguagem. [1] De fato, a visão que lançamos do livro que tem Marco Polo como narrador, é a de um verdadeiro exercício metafórico, procura-se ajustar o significado do passado, todo ele absolutamente traçado com recursos metonímicos, a evocação de dezenas de cidades, para a indicação de apenas uma, Veneza, resultado da leitura alegórica feita pelo autor. Italo Calvino certamente pensa o humano como realidade de grande complexidade, cercado por imagens, as mais diversas. Daí, saber do perigo manipulador da própria linguagem, que se quer absoluta. A idéia alegórica, aqui, tem a clara intenção de apresentar a alteridade, a ruptura normativa, a fragmentação do discurso feito por um sujeito cindindo em sua eventual identidade e a própria tensão enunciativa expressa na busca infrutífera de uma unidade já de toda perdida. O narrador contemporâneo passa a vivenciar, nesse intercurso narrativo uma espécie de dialética do reconhecimento, onde o sujeito-objeto-narrador postula retratar a sua imagem, problematizando os recursos temáticos e ideológicos que ele mesmo dispõe para compor suas histórias. Estabelece, desse modo, uma história do pensamento, do sentimento e da emoção captada pelo rito do espelho. Sabedor de que “sem imagens corremos o risco de perder o caminho”, [2] Italo Calvino via Marco Polo, embrenha-se nas malhas do labirinto escrito e perde-se, achando-se a si próprio no interior da cidade (o outro). É este desenho de recordações, disperso em cada um de nós, que fornece sentidos para o movimento além-razão, ritmo explícito das procuras, universo de difícil articulação: o maior mistério está em nós, rasgar os esquecimentos, apoderar-se das vertigens (a memória). Nossos olhos, num ziquezague de prazer, penetram na geometria imaginária de Italo Calvino, observando as sombras de Walter Benjamin e suas fecundas emboscadas, ruínas do flâneur. A narrativa de Italo Calvino acena para os perigos na cidade. Cidade onde se vive, se ama, se espera, se crê, se deseja, se busca, se aspira, se desespera, se sofre, se consola e se obtém os derradeiros resquícios de utopia. Toda cidade perpetua as indiferenças e distribui suas contradições, por isso implode a si mesma e explode na contramão das ideologias contemporâneas. A escritura calviniana põe a nu quaisquer fronteiras de gênero, sua ficção transita pelos meandros da poesia, da prosa e do ensaio. Sua literatura é um inventário de incertezas, onde as representações individuais e coletivas são problematizadas, nada é puro, tudo é escavação de experiências. Marco Polo é um experimentador do olho, é um observador da matéria que anda com os sentidos espatifados pelo chão da lucidez, fazendo a desmontagem dos enredos fixos. As cidades invisíveis é uma aventura, este ensaio é tentação – trilhas poéticas de uma época inscrita nos princípios da recriação. A OFERENDA DO OUTRO: MIGRAÇÕES DE LETRAS | Na busca do outro, a memória é sempre legível. É a inexorável aventura do escrito. A vida em permanente ebulição. A cidade – oferenda explícita das emoções – engendra o caminho por onde se pode aprender os fragmentos de inefáveis verdades; a memória da cidade desvenda a travessia de excessos na velha ponte de prazeres expostos. Toda cidade é montagem, representação de viajantes, distinta percepção dos fenômenos urbanos, a cidade fervilhante e os seus mil signos de robustos mistérios. Toda cidade é linguagem, visão de sonhadores, pontilhada manifestação dos desejos, a cidadelinguagem e as suas mil dobras de esboços inacabados. O outro é a seleção de máscaras, letras que migram para o interior do homem, conhecimento e poesia operacionalizando as dimensões do possível. Migração de palavras que se ocupam em decifrar as rotas das narrativas. No encalço da palavra-coisa, parte o andarilho. Seu mundo assume as regras de um perigoso jogo de escondeesconde, neste instante, a armadura deste caçador fixa exercícios de luta, demarcados pelo diálogo daquilo que se quer mais próximo: a articulação de signos e textos como elementos cruciais da narrativa. Combinando inúmeras categorias de pensar e de representar a multidão e a cidade, percebe-se a competência de Italo Calvino ao penetrar na pele de Marco Polo e descrever fisicamente ao imperador Kublai Khan, as cidades visitadas, imaginadas, amadas, inesquecíveis e invisíveis de um vasto e encantador reino. Os relatórios do jovem veneziano dão conta da grandeza, bem como da própria ruína que ameaça as terras do sábio líder dos tártaros. Calvino registra em As cidades invisíveis, as paisagens, os singulares detalhes, as proliferantes descrições, as abstratas sensações, os receios, as esperanças, enfim, o infinitamente mínimo de Marco Polo, presente em O livro das maravilhas. [3] Refazer cada leitura, deixar as marcas nas malhas do outro, eis a missão a que se propõe o romancista. A voz narrativa de Marco Polo perpassa todo o romance, de forma a corporificar os mais remotos pensamentos do caminhante. Na visão do passeador, a cidade multiplica-se no imaginário, de tal maneira que as sombras e as luzes de suas vastas regiões são a todo momento decifradas. De fato, a realidade flutua no espaço-tempo da existência humana, exprimindo o emaranhado de sentidos presentes no campo criativo das palavras. O corpo significativo da cidade reveste-se das diferenças e semelhanças que habitam a trama alegórica de Marco Polo, agora um personagem calviniano, traduzido no pleno desnudamento do gozo. Cabe assinalar que o termo passeador ou caminhante é empregado no atual contexto como referência direta à figura do flâneur, na medida em que o próprio Calvino, ao travestir-se de Marco Polo, expressa através da reconstrução imaginária do viajante, sua própria experiência como homem do mundo. O passeador indica um modo de andar flanando pelas cidades ‘civilizadas’, pelas suas ruas, praças e jardins. Passear < de passar < passare < passu, leva-nos a dizer que Calvino não apenas passa e atravessa as narrativas de Marco Polo, mas também, transpõe e busca exceder as histórias do viajante veneziano que a despeito de possuir finalidades comerciais caminhando pelas cidades orientais, consegue com a argamassa da imaginação enredar o ouvinte num mundo de fabulações. Com As cidades invisíveis, Calvino lança ao homem, as diversas possibilidades de amar o indefinido na cidade, a atitude de descrever minuciosamente cada faceta dos seus passeios, deixa-nos a sensação de embriaguez, o escritor forja o seu discurso projetando despudoradamente as mais recônditas armadilhas do objeto-texto: a cidade. Assim, as implicações da ação cartográfica são a senha para a penetração nessa rede-texto que é a sensibilidade do narrador. Marco Polo adentra o labirinto sem receios, importa-lhe compreender as identidades perdidas e os percursos prodigiosos que o levam a uma geometria paradoxal do indefinido traçado por novas rotas. Ele agarra-se aos nomes com a ânsia voraz de abrir caminhos, de não se deixar aniquilar pela mesmice, recusando as meias-verdades, seu projeto é puro engenho da mente, despojamento do devir. Sob esse prisma, podemos analisar a obra de Calvino, como uma grande alegoria [4] do humano. Por isso ao longo do nosso texto, apresentaremos a migração de letras que proporciona ao contador de histórias, no caso Marco Polo, razões para uma reflexão mais detida do que vem a ser sua trajetória, entendida como a mutação cultural de uma época repleta de incertezas e temores. Em princípio, os fenômenos temporais delimitam os movimentos anunciadores de uma vida por vir – o conhecimento da cidade dimensiona o olhar do narrador, não esgotando jamais a sua aventura: como colecionador de impressões (estímulos), ele fabrica imagens depuradas pela sua frenética procura. Sua forma de intervir sobre a realidade é deveras poética, pois só assim conseguirá reverter os princípios apocalípticos reservados à humanidade, já que um pouco de esperança não faz mal a ninguém e, trabalhar tal sentimento artisticamente é melhor ainda, afinal, “a arte continua sendo um caminho aberto para sair desse destino civilizatório da destruição e do nada”. [5] O narrador é um indivíduo em fuga, um jogador que tenta desesperadamente escapar da morte, do luto, eis a primeira marcação do discurso calviniano, o nada será uma conseqüência concreta transcrita na afirmação histórica de que é preciso resistir. Existem incontáveis maneiras de resistir, a de Calvino é narrar, desfiar o fio da memória, extraindo os segredos de cada passo dado; escancarando as portas da cidade, ele condensa as vozes díspares da grande aventura: flanar buscando a felicidade no outro. O Outro, aqui, remete-nos a Marco Polo, uma espécie de heterônimo de Calvino, já que ele (Polo) narra na prisão as suas viagens comerciais. Narrar torna-se, então, entretenimento, resistência, grito de ‘liberdade no cárcere. Os nove segmentos de As cidades invisíveis elaboram o sensível como categoria ímpar do espelhamento, a unicidade da cidade é vista na proporção de suas múltiplas realizações, as características urbanas são re-colhidas na razão direta da transformação operada no interior das cenas. O próprio Calvino afirma que “em Le città invisibili cada conceito e cada valor se apresenta dúplice – até mesmo a exatidão”. [6] O grande Khan, com a sua tendência racionalizantegeometrizante-algebrizante do intelecto, propõe uma combinatória do conhecimento, quer dizer, uma matemática das sensações representada por uma partida de xadrez. Nesse sentido, os relatos do veneziano emblematizam o nada; a conquista do outro, confere um estatuto de veracidade às fabulações inerentes à fala do narrador. As cidades são para Calvino como uma perigosa esfinge, que necessita urgentemente ser traduzida. Portanto, os limites estanques das interpretações rompem-se, permitindo uma concentração nítida, o sentido das coisas está sempre à deriva; ciente desta assertiva, o narrador trafega na sucessão de imagens que a sua memória é capaz de construir. A quantidade de viagens é uma incógnita, o viajante traz um mapa-múndi consigo, conhece o desconhecido, re-elabora as cores do conhecido e empresta nova moldura às fantasias. Ele renega a clausura, atravessa as ilhas, lê as fachadas do poético, contorna o pátio da escrita-natureza e finge acreditar na continuação do eterno momento. Suas cidades-fêmeas, distribuídas pelas nove seções do livro, são amadas diferentemente. Agrupam-se em quintetos, num total de onze combinações, formando 55 partidas de um jogo envolvente e inebriante que resultará na sua desvairada paixão por Veneza, sua mulher-fatal. Numa panorâmica, até onde a vista alcança, as letras e os nomes das cidades: da memória: Diomira, Isadora, Zaira, Zora, Maurília; do desejo: Dorotéia, Anastácia, Despina, Fedora, Zobeide; dos símbolos: Tamara, Zirma, Zoé, Ipásia, Olívia; das trocas: Eufêmia, Cloé, Eutrópia, Ercília, Esmeraldina; dos olhos: Valdrada, Zemrude, Bauci, Filide, Moriana; do nome: Aglaura, Leandra, Pirra, Clarisse, Irene; dos mortos: Melânia, Adelma, Eusápia, Argia, Laudômia; do céu: Eudóxia, Bersabéia, Tecla, Perínzia, Ândria; as delgadas: Isaura, Zenóbia, Armila, Sofrônia, Otávia; as contínuas: Leônia, Trude, Procópia, Cecília, Pentesiléia e as ocultas: Olinda, Raissa, Marósia, Teodora, Berenice; como um rock titânico, a poemática dos nomes, refúgio da solitária e distante Veneza. A desambição do Marco Polo calviniano prende-se, entre outras coisas, à nomeação das regiões vistoriadas, todavia, aquelas que aparecem através dos sonhos são, também, traçadas com precisão de detalhes. Já, em O livro das maravilhas, a infinidade de locais percorridos pelo viajante impressiona pela revelação de costumes legendários dos chineses, mongóis e persas. São relatos labirínticos, que atingem a alta expressão do maravilhoso no imbricamento com a realidade. Atrevemo-nos a pensar O livro das maravilhas, no mesmo plano das cidades de Calvino, ambos recheados por muita ficção: o que se vive para ser contado perde o seu caráter de objetividade, passando a ser uma mescla do real com o sonho; quantas maravilhas (não) foram sonhadas por Marco Polo em seu livro! Périplos do flanador. Borges acertadamente escreveu: “Marco Polo sabía que lo que imaginan los hombres no es menos real do que llaman realidad. Su livro abunda en maravillas”. [7] Calvino declara seu amor a Borges ao fazer de suas cidades invisíveis o fabuloso e alegórico embate da literatura. É um tributo à arte de contar, uma oferenda ao outro. Benjamin, por enquanto, apenas espia ao lado de Guattari, Virilio, Osman e Campos. Continuemos nosso itinerário. QUANTAS COISAS: OS SUBTERRÂNEOS DO LIVRO | Dizer o indizível (ver), espreitar as sombras silenciosas, traçar círculos de giz, abrandar as cicatrizes abertas, singrar o corpo familiar – o livro das imagens – ilha submersa, território temporal das casas úmidas: o (in)visível. A vertigem “do detalhe do detalhe do detalhe” [8] apodera-se de Calvino e o transforma num insigne fisiognomonista da cidade-texto, levando seu personagem (Marco Polo) ao infinitesimal , deixando-o oscilante entre a extravagância do mínimo e a incompletude do vasto; não é à toa que o grande Khan cumpre a sua sina, tocado pelas reviravoltas da dúvida e da crença. Nesse contexto é importante reter a passagem do tempo, as fontes de luz, vigiar o viço das coisas, sem petrificar as lembranças, investir o olho de memória. Aqui, em Isidora e todas as cidades da memória, o viajante sabe que “os desejos agora são recordações”. (CI,1990:12). Esta é a cidade de seus sonhos, o passeador, sentado ao lado dos velhos, contempla a juventude que passa, a possessão da espera consumindo os dias, o fulgor dos jovens alimentando a chama; Diomira com sessenta cúpulas de prata, o teatro de cristal e o seu galo de ouro (cantor matinal), raras belezas que variam com as estações, setembro chega e os dias mais curtos exibem um outro colorido ao lugar, é possível imaginar a felicidade de tais momentos; Zaira dos altos bastiões onde: A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui de recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pará-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CI, 1990: 14) Os acontecimentos passados estão relacionados às medidas de espaços da comunidade, às formas alternadas de respeitar a tradição não caindo no puro imobilismo, o cristal que seduz e mata. O passado é um texto em desalinho, um manuscrito que atravessa a tradição, é em derradeira instância, um palimpsesto – raspagens e colagens de outros textos. Zora – para sabê-la de cor, só com muita sabedoria, porém Zora definhou, ao permanecer imóvel e imutável, a memória precisa de movimentos, de sopros revitalizadores do presente, por isso a cidade foi esquecida, perdeu o vigor da chama, desapareceu. Maurília – a do presente (a metrópole) com os seus atrativos e a provinciana (do passado) – só pode ser observada com a ajuda dos velhos cartões postais ilustrados (arcabouço da memória), fragmentos da sedutora saudade com suas páginas arrancadas do mesmo livro: a nostalgia do estrangeiro, exilado em suas próprias fabulações. Portanto, prenhe de sonhos. Em cada uma delas, reside a gigantesca memória incrustada no pequenino véu das recordações: Veneza é a clandestinidade da chama e do cristal. Como diz Benjamin: “a memória é a mais épica de todas as faculdades” [9] quebra os limites das fronteiras, sintetiza o ato narrativo, prolonga o eco das vozes, assegura as particularidades, invoca a necessidade da tradição aliada aos ventos da modernidade. Mnemosyne demonstra a articulação das falas, aproximando ocidente e oriente – Marco Polo/Kublai Khan – como musa da narração consagra a peregrinação do herói em constante desarmonia; entre lágrimas e sorrisos, a musa domina as cenas da cidade. Com efeito, Calvino esbarra na figura do narrador benjaminiano, os dois tipos arcaicos de contadores de histórias: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, ambos tomados pelas experiências vividas evocam o diálogo: o ontem e o hoje. Suas vivências possibilitam o resgate do próprio paisagismo, atitude magistralmente desencadeada pelo romancista italiano. Em Todas as cidades, a cidade, [10] de Roberto Cordeiro Gomes, o ensaísta faz uma aproximação dos primeiros mestres da arte de narrar (o camponês e o viajante-marinheiro, na perspectiva de Benjamin) com o personagem calviniano: O escritor italiano redita este tipo de narrador, na figura de um viajante contumaz, Marco Polo, que retira da experiência de suas andanças o que narra a Kublai Khan que, por sua vez, incorpora ao império – sua própria experiência – aquilo que ouve. A relação de diálogo entre eles patenteia o jogo narrativo que faz as falas circularem. (1994: 43) Depura-se, dessa feita, a cumplicidade entre os protagonistas – seres expostos às aventuras do verbo: colecionadores de imagens, sonhos, espantos, de lendas, luas, céus, estrelas, a vida rastreada pela memória poética das excursões. Na realidade, examinando de esguelha, o Polo de Calvino, encontramos marcas do camponês e do marinheiro (como sedentário e andarilho que viveram inúmeras experiências). Ele derrama-se em palavras, converte-se em lâminas, rabiscando as páginas em branco do livro, aberto pela natureza: por outro lado, uma outra marcação narrativa se impõe, a do flâneur – que solitário e angustiado enxerga o inusitado das horas, os defeitos da natureza, as intempéries da vida e multiplica os seus sentidos, é o alegorista visitando dezenas de cidades e o seu sagrado e profanado chão (Baudelaire em Paris), ornamentando os desejos implícitos e explícitos, enfim, decodificando roteiros. Apenas relembrando, a figura do flâneur está relacionada a da ociosidade do poeta na cidade grande. Ele passeia para passar o tempo, visto que é um desocupado e não há trabalho para ele no capitalismo. Ad nutum, avistamos Dorotéia, com trilhas e informações plantadas no passado, presente e futuro, os lados desfraldados da escritura humana; do desejo, também desponta Anastácia, cidade enganosa, de poder ambíguo onde o mal e o bem seguem entrelaçados: “Banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas” (CI, 1990: 16), lá, o gozo é súpero e os desejos são saciados. Vamos a Despina, de paredes caiadas, pátios azulejados “cidade de confim entre dois desertos”. (CI, 1990: 21) Encontramos a metrópole de pedra cinzenta, com as suas miniaturas da cidade ideal, esta é a Fedora, jogo anagramático de fedra, com outras pequeninas Fedoras das esferas de vidro; fazendo um retorno ao desejo, ainda, caímos na feiúra, na armadilha, Zobeide – branca, exposta à luz, ruas enoveladas, um mistério para os recém-chegados. Sim, todo desejo é enigma, extravio das tensões, desmonte das perguntas, sendo assim, diante da expectativa do Khan, Marco Polo declara: As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa. (CI, 1990: 44) Seduzido por seu inarticulado informante, Kublai rodopia na sala de espelhos que é o seu império. As metáforas e imagens descrevem-lhe as maravilhas imaginárias conquistadas pela força das batalhas, a mente e o corpo irmanados pela euforia das idéias, luminosa construção do texto. O narrador – flâneur e a dinâmica das ruas; o marinheiro e o significado das ondas, dos portos e suas viagens; o camponês e a fogueira (chama pulsante), pessoas à sua volta. Calvino – Marco Polo, Benjamin – narradores arcaicos e modernos na sucessão espelhada das páginas por escrever. Os subterrâneos da alma ratificando cada gesto a ser escrito. Quantas coisas sob o manto da multidão, farejadas pela leitura do outro, sujeito e objeto inflamados por suas deliberadas vontades: Fomos aqui confiscados aqui nossa memória tornou-se alegoria [11] Episódios longamente descritos com discrição, minudências e surpresas do outro, basta ter paciência e coragem para romper as portas do ilusório e apreender com acuidade crítica a alegoria [12] do flâneur, nos marescampos do marinheiro-camponês. Quando a visão nostálgica, referida anteriormente, nasce com As cidades invisíveis, Calvino, alegoricamente, retrabalha as variantes expressas nas condições de permuta e reformulação de conceitos. Re-vê o tom de passadismo de algumas passagens do livro. O narrador calviniano não é prisioneiro de uma tradição, não se satisfaz somente com o rememorar, não se realiza apenas com as lembranças. Pelo contrário, ao incorporar a unidade do passado, o escritor esmiuça o seu olhar, aplicando-o nas figuras do presente e do futuro. Por esta razão, sua tática narrativa vale-se das viagens, das conversas e dos passeios pelo interior da cidade, todos os seus jogos explicitam-se sem o peso dos psicologismos e filosofismos. As referências estão nas coisas mais recônditas. Resta-nos sentir o sabor da existência, presente no âmago dos desejos (ir)realizados. Tudo isso somado recupera a inquieta contemplação da Poesia. A proposta de Calvino é o reordenamento das cidades. Um pensador-poeta, como Félix Guattari, reflete em Caosmose, [13] na Restauração da cidade subjetiva, questões que envolvem economia, ecologia, política, sociedade e cultura e discute ao mesmo tempo a reconstrução dos processos ético-políticos (a cultura política) voltada para a valorização do homem. Guattari se embrenha nas megamáquinas (expressão tomada de empréstimo a Lewis Mumford), as imensas cidades com a sua inesgotável capacidade para produzir subjetividades, para elaborar e propor uma mudança global da vida, “uma mutação das mentalidades” (p.174) e de alguma maneira re-territorializar o ser humano, hoje fundamentalmente desterritorializado. A subjetividade é o reino para a operacionalização de toda e qualquer mudança. Enfatizando o direito à subjetividade, Guattari aspira a “uma ordem objetiva mutante” (p.175) que nasceria do caos atual. A lógica do caos, traduziria uma nova poesia, uma nova arte de viver. Tanto Calvino quanto Guattari aplicam suas emoções nas cidades invisíveis; pois subjetivas e subjetivas porque invisíveis. As atividades humanas reinventando o próprio devir urbano, desde priscas eras – Marco Polo/Kublai Khan e as maravilhas do mundo. Os procedimentos singulares de narradores especiais como Benjamin, Calvino e Guattari constituem uma arquitetura poética alicerçada na produção da subjetividade que deflagra sempre algo por fazer: um olhar, uma cidade, uma escritura. A CIDADE : UM OLHAR POR FAZER | A fotografia da cidade atada aos nomes corresponde à febre estimulante, à plenitude e rasura das unidades instauradoras do pensamento. Trabalho e parto extinguindo a melancolia, o tempo fixado na palavra, no chamado perturbador do dizer. Além do sensível, a ordem é desembarcar no abrigo que recorta as praças, as ruas, o comércio, as fábricas… a cidadezinha e a metrópole lado a lado, aparências narcísicas subordinando máquinas e pessoas, os meios concentrados nos fins, miséria e esplendor circulando a esmo, enquanto a vida fervilha. As cidades invisíveis lembram uma escritura azulada, tessitura de bilro, labirinto, garrafas coloridas, renda, ladrilhos de uma época kitsch, azulejos de um passado longínquo, casarão de fantasmas manifestos. A obra realiza o trabalho de ligação entre os problemas, visto sob a ótica das diferenças: o viajante conta as suas distantes andanças atreladas à natureza que move os dias atuais, imagens reproduzindo imagens, a ilusão da fotografia, malabarismos do olhar e o abismo sem sentido que as energias absurdas da destruição suscitam. A versão de Calvino protege a cidade do aniquilamento total, valorizando (urbanizando) o afeto, que lentamente pode ser capturado com um mínimo de contemplação: a leveza associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório, nas suas próprias palavras. Extraordinária narração onde o vento é sempre respeitado, onde tudo principia com o olhar: invenção e passagem igualmente amadurecidas. Desenhos leves, rápidos, exatos, visíveis e múltiplos da cidade. Estamos circulando no espírito e na poeira das palavras – nomes, interrogações cúmplices do gosto, pois, a obra é a expressão nominal e amorosa dessa ira narrativa –, o mundo ensandecido pela geometria de uma grande herança agressiva: o romance como arte. As cidades e os símbolos: Tamara e o reconhecimento das figuras; Zirma, cidade redundante; Zoé, em todos os pontos, “o lugar da existência indivisível” (CI, 1990: 35); Ipásia e a sua misteriosa língua, presente nas coisas, não nas palavras, a linguagem sempre enganosa e Olívia com as suas metáforas de fuligem: “A mentira não está no discurso, mas nas coisas” (CI, 1990: 60). Não nos esqueçamos jamais de Olívia e o discurso que a descreve. As aparências ilusórias dos símbolos escondem cidades governadas pela sede das lembranças, alternativas seguras para determinação dos próximos passos. Perder-se nas cidades delgadas: Isaura e o seu movimento celeste, seus mil poços; Zenóbia erguida sobre altíssimas palafitas, embora em terreno seco, com suas casas de bambu e zinco; Armila, cidade inacabada/demolida, caprichosa e enfeitiçante; Sofrônia e as duas meias cidades, uma fixa (de pedra, mármore e cimento), outra provisória (cidade-circo-espetáculo) e Otávia – teia-dearanha. Achar-se no flagrar das trocas: Eufêmia, onde é possível alternar a memória, Cloé, cidade grande, casta e luxuriosa e Eutrópia: Os habitantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinações de palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais. Única entre todas as cidades do império, Eutrópia permanece idêntica a si mesma. Mercúrio, deus dos volúveis, patrono da cidade, cumpriu esse ambíguo milagre. (CI, 1990: 63) Eutrópia < Eu + Tropos é, provavelmente, no conjunto das cidades invisíveis a que remete com mais propriedade para uma topografia do eu – o tropos, a figura da cidade calviniana, raridade escorregadia das identidades. E mais adiante, enroscadas aparecem Ercília, com as suas teias de aranha à procura de uma forma e Esmeraldina, cidade aquática, lá, nada se repete. Em Calvino tudo transita, há um êxtase contemplativo, as cidades são (f)olh(e)adas no seu dualismo: sombra-luz, fora-dentro, ordem-tumulto, seco-molhado, diferençaidentidade, voz-silêncio. Cada coisa tem o seu duplo e os rumos, aparentemente díspares e desencontrados, armam superfícies fictícias arrebatadoras. De repente, o Marco Polo de Calvino na sua flânerie [14] atravessa, como bom marinheiro e camponês que é (o homem e o seu duplo, triplo …. n encenações ), as cidades de Anneliese Roos, encantadora personagem do não menos fabuloso Avalovara de Osman Lins. Como Polo, ela geme atingida pelo febrão dos nomes, depressa, lança seu olhar na movimentada história de encontros, percursos, revelações, espirais, quadrados, nascimentos, leões e relógios figurativos. Abel em busca do paraíso e o rosto de Roos – tecido pela imensidão das cores e dos nomes, amplas descobertas de um amor descompassado: Roos e as muitas, muitas, muitas cidades oriundas das circunstâncias coléricas das megamáquinas: Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que me segue sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salamanca, Samotrácia, Sodoma, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. [15] O narrador confabulando com o silêncio, espécie de Kublai Khan cego diante do esplendor alfabético das cidades. Olhando de viés, a estreita distância que nasce da sombra tardia e da luz que orquestra suas vinganças. Anneliese Roos/Abel na invisibilidade imperial do mercador veneziano. As cidades parideiras de Calvino beijando o infinito e ofertando-nos uma realidade pontilhada pela poesia. Concomitantemente, à geografia atrativa dos símbolos compartilhados, surge o entusiasmo pela versão plausível e verossímil de que os lugares são fragmentos de viagens imaginárias. Eis o risco da perdição. O escritor italiano realiza a literatura como um sonho dirigido, preceito borgeano para o acabamento das pequenas (grandes) obras-primas, como é o caso de As cidades invisíveis. Contar a história da cidade no mesmo instante em que caminhamos por ela – ecos pretéritos, invenção das horas. De acordo com Hillman: “Há sempre um perigo para a alma se estamos indo apenas para cima, ou seja, se enfatizamos vistas panorâmicas, arranha-céus, e não mantemos as alturas em relação às profundidades”. [16] Calvino, a todo momento, (des)centra seu olhar na tentativa de aprender a cidade alegórica e invisível, em oposição ao absolutamente visível e racional, assim poderá formular novas maneiras para fugir dos labirintos, se assim o quiser. Por isso as cidades são contínuas: Leônia que se refaz todos os dias, onde os lixeiros são acolhidos como anjos, a metrópole vestida de novo, a excessiva preocupação com o acúmulo, o perigo do lixo, há um frêmito prazer pelo novo; Trude, de casas amarelinhas e verdinhas, um mundo recoberto por uma única Trude, sem começo, nem fim; Procópia e a alegoria dos arranha-céus, homens acavalam-se nos ombros dos outros, fazendo o céu desaparecer; Cecília, ilustre cidade, de espaços misturados, assim diz o pastor de cabras – ela está em todos os lugares e Pentesiléia –uma periferia de si mesma, onde “as malhas da cidade se restringem” (CI, 1990: 142). Fios contínuos escorrem das cidades ocultas: Olinda, como os troncos das árvores, cresce em círculos concêntricos, aqui se pretende atingir “o coração da cidade” (CI, 1990: 120); Raíssa, onde a vida não é feliz, porém a cidade infeliz contém uma outra feliz que ninguém imagina que exista; Marósia, a cidade dos ratos e das andorinhas, quiçá a grande alegoria do livro, pois, para Marco Polo de Calvino, ambas se transformam com o tempo, há o tempo dos ratos (talvez o nosso) e quem sabe o tempo das andorinhas (a esperança de dias melhores). Na verdade, a liberdade das andorinhas depende exclusivamente dos ratos, um diz o outro e viceversa. Teodora, depois de enfrentar repetidas invasões e tenebrosas pestes, os homens a humanizaram novamente, a peste dos ratos querendo impor mais um século de sombras e Berenice, cidade injusta, a cidade dos justos está oculta. As relações entre dominadores e dominados são sempre desiguais e cruéis, o trabalho escravo, sem sentido – germes das futuras metrópoles, as Berenices justa e injusta propõem a alegoria da justiça – ler, de muitas maneiras, o outro-oculto. Como postula Calvino, o importante é a cautela do jogo, o paciente exercício do olhar e a postura ética do narrador que deve desconfiar das técnicas meramente racionais impostas pelos homens. Enfim, interessa-lhe averiguar os procedimentos fictícios construídos pela ‘imaginação’ aqui e além e, perseverar na produção de vários sentidos sempre mais generosos para a vida. E, por fim, compreender a cidade superexposta como tão bem o fez Paul Virilio. A superexposição da cidade aflora de sua própria (in)visibilidade. Analisar a cidademundo, as metrópoles contínuas e ocultas ultrapassando os limites capengas de uma rendição à máquina. Em O espaço crítico, [17] Virilio capta as simples e complexas aparências da cidade, atentando para as reproduções técnicas das imagens que pecam pela falta de tempo, não duram, não mobilizam o pensamento, arrebentam com o sensível, proíbem os sonhos, aniquilam as emoções, fingem confraternizar, mas impedem o gesto mais elementar do abraço, explodem a visão e esquecem do olhar profundo – humano e ético. A seriação das imagens e sua avalanche de cores não conservam os sentimentos, perdem a historicidade, renegam o passado (o anacronismo nostálgico) – miram-se no futuro, que também é vago-nulo pela própria representação do presente. Em suma, na cidade superexposta as imagens são despoetizadas, cultuam a rapidez e nesse ritual esquecem de ‘reverenciar’ a sua alma gêmea, a lentidão. Até aonde vai o tempo das imagens contemporâneas? Calvino, Guattari, Virilio … há uma saída, ainda: restaurar a subjetividade das cidades superexpostas e invisíveis. Anneliese Roos e as ruínas do olhar, Abel entre as nuvens: em silêncio a Cidade deixa de existir e não me diz seu Nome. Dissolve-se a visão, sim, não me revela seu Nome, sim, mas a procura de seis ou sete anos afinal se define, sei por fim o que devo buscar e contemplar, sendo indispensável que o intente. Vai, Abel, buscar a Cidade: eis incumbência. [18] Os nomes: Aglaura, cidade apagadadespersonalizada; Leandra com os seus Lares e Penates, deuses protetores; Pirra, cidade imaginada a partir do nome; Clarisse – borboleta saída da mísera Clarisse-crisálida, cidade gloriosa de história atribulada e Irene, “talvez eu só tenha falado de Irene” (CI, 1990:115), quanto mais nos aproximamos dela, mais ela se modifica; e os olhos: Valdrada e as cidades gêmeas vivendo uma para outra; Zemrude e sua forma flexível, que varia segundo o humor de quem a olha; Bauci, cidade aérea com pouquíssimo contato com a terra, a cidade está plantada nas longas pernas do flamingo; Fílide e as suas inúmeras pontes, com seus habitantes andando por linhas em ziguezague e Moriana, “cidades como esta tem um avesso” (CI, 1990: 97). Toda escritura tem o seu avesso, e muitas vezes ele vem sob o signo do silêncio. Nos aproximamos do fim ou do começo? Não sei, tudo é espiral, estamos entre os mortos e o céu, o primeiro grupo com: Melânia, de inveterados dialogadores, uma cidade-palco de indivíduos atores; Adelma, onde o narrador encontra-se com seus mortos, vê-se como parte deles. As imprevisíveis visões o assustam, tudo lhe mete medo; Eusápia, a que aproveita e evita aflições, a que possui no subsolo uma cópia idêntica a sua cidade dos vivos; Argia, onde no lugar do ar existe terra e Laudômia, mais do que dupla, Laudômia é tripla – uma dos vivos, uma dos mortos e outra dos não-nascidos (a cidade do futuro) das multidões invisíveis. No segundo bloco, admiramos: Eudóxia, com a sua urdidura-atapetada (seus detalhes estão no desenho do tapete), a relação entre o tapete de feitura divina (o céu) e a cidade, reflexo do primeiro, como as obras humanas; Bersabéia, uma terrena e outra celeste (cidade-jóia), inferno e céu confrontados; Tecla, a cidade em permanente construção, única saída para se evitar a destruição; Perínzia, que segundo os astrônomos “espelha a harmonia do firmamento” (CI, 1990: 130) e as deformidades humanas trancadas a sete-chaves, a cidade dos monstros, sempre às esconsas e Ândria, construída com tal arte que suas ruas seguem a órbita dos planetas: “Os dias na terra e as noites no céu se espelham” (CI, 1990: 136), cidade e céu desiguais, Ândria permanece imóvel no tempo e os seus habitantes confiam em si mesmos e são prudentes. Calvino com o seu Marco Polo aperfeiçoa, ao longo de infinitos passeios, sua adorada Veneza. Kublai Khan e seu império em ruínas, a ordem invisível dita os destinos da cidade. Calvino, nessa composição enxadrística, aplica um xeque-mate no puro racionalismo, faz do insignificante peão, a peça sublime tão almejada pelo rei (majestade em frangalhos). Oh Veneza, as outras em você! Calvino e as suas cidades, um olhar por fazer. Italo Calvino, em momento algum, perde de vista a cidade e os seres humanos, lança mão de um estilo fabular, alegórico, ao recriar histórias com o clássico sabor das antigas aventuras. Marco Polo, em suas missões diplomatas, enumera suas conquistas – num diálogo rápido, certeiro e conseqüente com Kublai Khan (ouvinteleitor-autor). O Marco Polo de Calvino re-faz a viagem pelo vácuo absoluto do tempo, cada nome é Veneza e Veneza está em todos os olhares: “Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza” (CI, 1990: 82). O aventureiro arrisca, ao traçar narrativas precisas e minuciosas, a linguagem evocativa de outras trilhas, a mente e corpo direcionando as imagens, ao mesmo tempo, que são delineados pelos (re)toques daquilo que concentra o meramente visível. No fundo, os gestos, as sombras, as luzes, os rostos, as paisagens, as trocas impressas na retina, exploram um modo especial de ver. Calvino retoca a capacidade de escrever através de “uma ética do olhar”, [19] as imagens que se movimentam com a dignidade e a postura de um mundo futuro, à procura do sublime. Benjamin – flâneur – refletindo a Paris de Baudelaire, do mesmo modo que aprecia as imagens do pensamento – da infância em Berlim, até Nápoles, Moscou … Paris – cidade espelho, outra vez Veneza. A cidade – escrita (migrações de letras, subterrâneos do livro, um olhar por fazer) é banhada pelas coisas do outro, a cidade onde os enredos são peças vivas da poemática respiração. Nessa viagem, quanto ficou por dizer! Porém, entre a partida e a chegada, há sempre os enigmáticos meandros dos espelhos – arredores projetados por um deus profano, chamado amor. As feições da natureza superexposta e da outra invisível compensam a restauração do canto, posto na cidade quando os arquivos mortos se tornam vivos e a sede dos ancestrais devora o universo mágico do presente. A alegoria calviniana é, basicamente, se assim podemos resumir, a momentânea crueldade dos nomes, o castigo do automatismo e a supremacia prepotente da máquina, observada sob o ângulo emblemático do cristal, a urdidura da chama como raiz da memória, sopro vital para o amanhã. Pois, a chama transforma em cinzas a memória que ressurge como Fênix. Veneza encarna o futuro e o presente de cada cidade que trazemos adormecida em nosso alforje; a ternura da lembrança, a retirada das máscaras, o aparecimento de novas figuras sobre o ser; nas ilhas do outro, somos navegantes de diferentes imagens; nas ilhas do outro, somos navegantes, sonhamos a pátria através de um nome, um nome-abrigo, um ar (in)visível, um vinho que inebria e salva, um nome-brinde à beleza, um sinal silencioso de que: Toda cidade / nasce grávida e estéril criança arquetípica / que se dá e nega pátio de encontros / e de dispersões …… um bilhete singelo / ao nada [20] Sim, a cidade é constituída de ruínas e com o frescor das paixões. As cidades invisíveis de Calvino realiza a viagem da incertitude quando embaralha os indícios das verdades pré-concebidas e dos enredos lineares e prontamente inteligíveis. Pode-se afirmar que: Sua narrativa opera uma negação da lógica positivista, segundo a qual os fatos falam por si revelando significados unívocos e determinados (lógica subjacente à estrutura dos romances policiais) e desconstrói o esquema de pensamento racional que, em nome da verdade e da certeza, reprime a diversidade de sentido. [21] Dito isso, seguimos o itinerário lacunoso e fragmentário, não dizível das cidades invisíveis na tentativa de enxergar o outro como prolongamento do nosso olhar – num contínuo processo alegórico –, necessário e imprescindível como o próprio ato de respirar. Dentre as inúmeras maneiras de se falar de uma cidade, esta é apenas uma. Certamente muitas outras existem, mais alegóricas, metafóricas, auráticas e até mesmo científicas, que se mostrem. BIBLIOGRAFIA CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 5 ed. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. ___. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. CAMPOS, Sérgio. As iras do dia. Nova Friburgo/RJ: Mundo Manual Edições, 1990. ___. Leitura de cinzas. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1993. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 6 ed. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas, Vol. I). BORGES, Jorge Luis. Biblioteca personal (Prólogos). Madrid: Alianza Editorial, 1988. ___. Ficcionario – una antologia de sus textos. (Edición, Introdución, prólogos, notas de Emir Rodrígues Monegal. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. FRANCO, Renato. Itinenário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora da UNESP, 1998. GAGNEBIN, Jeane Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/ Campinas, FAPESP: Editora da UNICAMP, 1994. GOMES, Renato Cordeiro. Toda as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. GUATARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 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Em sua primeira conferência, sobre a Leveza, Calvino afirma em forma de quase confissão: “esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.” P. 15. 2. HILLMAN, 1993:40. 3. Cf. POLO, 1994. 4. Jeanne Marie Gagnebin trabalha o conceito do alegórico em oposição ao simbólico: “Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unicidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (all-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último”. Simultaneamente, a autora detalha as duas fontes de onde a linguagem alegórica extrai sua exuberância: a tristeza (o luto) e a liberdade lúdica (o jogo). Cf. História e narração em W. Benjamin. São Paulo, Perspectiva/Campinas, FAPESP – Editora da UNICAMP, 1994, p. 45-46). 5. SUBIRATS, 1993: 34. 6. CALVINO, op. cit. p. 86. 7. BORGES, 1988: 68-69. 8. CALVINO, op. cit. p. 83. 9. BENJAMIN, 1993: 210. 10. Neste roteiro poético das cidades, o autor desmonta pedaço por pedaço as histórias dos possíveis territórios imagináveis do homem. Divido em duas partes: I – O Cristal e a Chama (com a presença de Calvino, Benjamin, Borges, Paz e outros) ele realiza um passeio pelas maravilhas da cidade-escrita; II – Suíte Carioca – o Rio de Janeiro é repartido em colantes fragmentos amorosos, a cidade maravilhosa e as cenas mutantes de uma paixão; por ela passeiam Marques Rebelo, João do Rio, Lima Barreto, Mário e Oswaldo de Andrade, Rubem Fonseca, entre tantos. O Rio é uma cidade-espelho-labirinto de signos. O trabalho de Renato Cordeiro Gomes redesenha o espaço urbano através das vivências literárias. Múltipla leitura de um ensaísta bem aparelhado e, sobretudo, sensível ao jogo textual. 11. CAMPOS, 1990: 50. 12. A propósito é importante conferir, A alegoria na modernidade (p. 147-150), um dos tópicos do 5º capítulo, ou como registra o autor, 5º Movimento – as ruínas estão em toda parte. Neste item de sua tese, Renato Franco discute com propriedade e acuidade crítica os significados e a importância da representação alegórica na modernidade, partindo de Benjamin. Rebate e nega, inclusive, abordagens ligeiras e tacanhas emprestadas corriqueiramente ao termo alegoria, visto grosseiramente apenas e, sobretudo, como um despiste políticoideológico. Algo bastante redutor, pois que a alegoria é muito mais do que isso. É um processo e um método de composição dos mais importantes da arte moderna. In Itinerário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Editora UNESP, 1998. 13. Veja-se GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. 14. A flânerie é a maneira encontrada por Calvino de andar pelas narrativas. Como um passeante metropolitano, ele volta no tempo e vê passar diante de seus olhos as cenas das cidades percorridas por Marco Polo. 15. LINS, 1995: 259. 16. HILLMAN, op. cit. 39. 17. veja-se VIRILIO, Paul. O espaço crítico, 1993. 18. LINS, op. cit, 336. 19. PEIXOTO, 1994: 309. 20. CAMPOS, 1993: 24-25. 21. Cf. O ensaio O Delfim: uma leitura pós-moderna da história, de Maria Lúcia Fernandes Guelfi, 1999:255. ***** LEONTINO FILHO (Brasil, 1961). Poeta e Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/1991/1999), Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do ensaio de crítica literária – inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Léon-Gontran Damas, o terceiro homem ou o primeiro poeta da Negritude francesa? (Em colaboração com Antonella Emina) Introdução: Léon-Gontran Damas, um poeta de poetas, quase desconhecido entre nós. [1] A recepção de Léon-Gontran Damas, dentro do célebre trio da Negritude de língua francesa - Césaire, Senghor e Damas -, não deixa de ser problemática e paradoxal não só entre nós brasileiros como nas Américas de um modo geral, na Europa e até mesmo em África. Damas nasceu a 28 de março de 1912, numa família mulata da pequena burguesia que ambicionava marcar a sua diferença em relação aos "negros", em Caiena, capital da Guiana francesa e a cidade mais próxima da fronteira Norte do Brasil. Damas foi o primeiro dos três autores a publicar um volume de poemas, com o título revelador de Pigments (1937), antes mesmo da primeira versão do Cahier d’un retour au pays natal de Césaire, [2] de 1939; foi o primeiro a editar uma antologia sobre poetas negros, um ano antes (em 1947) da conhecida e celebrada antologia de Senghor de 1948 com o prefácio de Sartre, Orfeu negro; foi o primeiro ainda a publicar, muitos anos antes, poetas (negros, no seu caso) em diferentes línguas, anunciando à distância o que Édouard Glissant buscaria fazer de certa forma na sua antologia de fim de vida. [3] Por outras palavras: Damas foi o precursor, o São João Batista do movimento da Negritude, [4] sem que isso seja reconhecido de um modo geral. Do trio de poetas, foi ainda provavelmente o que melhor conheceu o Brasil, onde viveu por longos períodos, sobretudo depois do seu casamento com uma brasileira, Marieta Campos; fez viagens de estudo e de intercâmbio através da África e das Américas negras; teve uma breve carreira política e ensinou durante anos em universidades americanas. Entretanto, apesar da sua importância evidente, nunca teve uma só das suas obras traduzida para o português a não ser episodicamente: alguns poemas esparsos. Tentaremos aqui abordar a sua poética a partir do seu primeiro livro de poemas, Pigments. O mais estranho ainda nesse ocultamento que corresponde de certo modo à lua negra é o fato de que Damas é sem dúvida nenhuma o poeta que mais marcou, difundiu e provocou poetas: Léopold Sedar Senghor dialoga com o guianense no seu conhecido poema "Les tirailleurs sénégalais", Aimé Césaire dedica-lhe um poematúmulo por ocasião do seu falecimento em Nova York e Edouard Glissant destaca, em vários dos seus ensaios, a sua importância não só na apreensão e expressão de um certo ritmo próximo da fala coloquial, como na reescritura literária da oralidade tradicional. Enfim, a realizadora Sarah Maldoror, no seu filme-documentário, [5] apresenta os depoimentos entusiastas e reverentes do martinicano Césaire e do senegalês Senghor sobre o guianense. Agulha Revista de Cultura Dois textos exemplares do poeta Daniel Maximin. [6] Damas e a fé do quilombola. Um outro poeta francófono antilhano, nascido na Guadalupe, Daniel Maximin (1947), de outra geração mais jovem, saúda e evoca Damas em dois textos, ambos reveladores: o primeiro em versos livres; o segundo em prosa poética. Creio não haver melhor ponto de partida para nós do que essas duas codas de variações. DAMAS, FOI DE MARRON Vieux-corps sec ta bouche pirogue en silence vers la septième enfance outre mère et forêt vierges à ton désir malade pour accoucher ta voix afro-amérindienne beau cœur limbé de racines cambriolé puis l’arme blanche des nuits de Seine pigmente ton masque nègre ton cœur de chauffe trop mal flambé se distille entre jadis et aujourd’hui entre la faim et la nausée entre le sang et l’eau en black-out et Black-label et mine de rien la clé de ta tendresse sous le paillasson des départs névralgiques tes graffiti griffent les murs sans oreilles d’amour et de révolte foudroyant mot à mot à coups de rêves sauvages la mort au téléphone dans ta langue bagnarde Damas étoile marronneuse des voies lactées tu fréquentes ce soir les quartiers mal famés de la lune rebelle à ton exil en ELLE fille des minuits de sangs mêlés et l’avenir barque indécise au fil d’un seul vrai rêve recréé jusqu’au bout du sien propre remonte les trois fleuves entre la mer et l’Amazone loin de tout rivage prématuré. O poema de Maximin cria, como perceberá imediatamente o leitor, variações não só em torno dos principais temas de Damas, como traça a geografia sentimental do guianense recitando os principais títulos das suas obras (Pigments, Black-label, Graffiti, Mine de riens). Apresentamos abaixo uma tradução que ajudará o leitor na sua primeira leitura: DAMAS, FÉ DE QUILOMBOLA Velho corpo seco a tua boca piroga em silêncio para a sétima infância além-mãe e floresta virgens ao teu desejo doente de fazer nascer a tua voz afro-ameríndia belo coração dorido de raízes roubado depois a arma branca das noites do Sena pigmenta a tua máscara negra o teu coração de calor mal flambado distila-se entre ontem e hoje entre fome e náusea entre sangue e água em black-out e Black-label e como quem não quer nada a chave da tua ternura sob o tapete das partidas nevrálgicas os teus grafitis arranham as paredes mudas de amor e de revolta fulminando palavra por palavra a golpes de sonhos selvagens a morte ao telefone na tua língua de condenado Damas estrela fugitiva das vias lácteas frequentas à noite os quartos mal afamados da lua rebelde ao teu exílio nELA filha das meias-noites de sangues misturados e o porvir barca indecisa ao longo de um só verdadeiro sonho recriado até ao fim do seu próprio sobe os três rios entre o mar e o Amazonas longe de toda margem prematura. [tradução de LPA] Damas, fogo sempre sombrio. O segundo texto de Daniel Maximin, aparentemente bem mais simples, mas igualmente revelador, resume em prosa poética os principais acontecimentos de uma vida, evocando a trajetória trágica e patética de um órfão de mãe e de irmã gêmea, que se fecha durante anos num mutismo radical como recusa de uma sociedade colonial e diglóssica. E no entanto, para Damas, a língua será a fonte da vida e da sua morte. Esse resumo nos servirá de ponto de partida para a análise da poética de Damas. No seu título, Daniel Maximin, fiel uma vez mais à intertextualidade antilhana, recita o título do poema-tumular de Césaire: LÉON-GONTRAN DAMAS, Feu sombre toujours Léon-Gontran DAMAS est né le 28 mars 1912 à Cayenne, en Guyane. Longtemps muet dans son enfance, il est décédé à New York le 22 janvier 1978, des suites d’un cancer de la langue. Entre ces deux mutismes s’est élaborée son œuvre: bégaiements de poésie crayonnés sur les murs du silence, de l’oppression et de l’indifférence. Sève noire, sel noir, suc et sueur nègres, de la mort à la vie, sur la terre des parias, trois fleuves, Afrique, Europe, Amériques: trois fleuves coulent dans mes veines. Trois continents, additionnés de soustractions: pas d’origine, pas de généalogie, pas d’ancêtres reconnus: l’abondance d’origines perdues sous la nudité originelle d’une table rasée des traces sûres du passé. Et le petit-bourgeois crépu s’embarque en quête de la vraie vie avec: âme d’emprunt, corps emmailloté, cœur un long soupir. Aussi son action s’exercera-t-elle jusqu’à sa mort à travers toutes les activités disparates qu’il mènera de front avec un mélange de fougue, de dilettantisme, de détachement et de passion, porté toujours par la ferveur mise à collecter sans relâche les paroles de beauté et de révolte du monde noir tour entier, de ces cultures d’Afrique et d’Amérique qu’il voulait toutes embrasser, défendre et répandre, de Paris à Dakar, de Harlem à Rio, de Fort-de-France à Cayenne. Homme fantasque et pathétique, sarcastique et tendre, blessé et sentimental, amoureux de l’amour, tourmenté à tire d’elles, il fut tout au long de sa vie un médiateur de poésie, la sienne et celle de tous les autres. Certain qu’il faut, que le poète garde la parole, l’urgente, la fragile, la nécessaire, en graffiti jetés contre les murs des égoïsmes collectifs et singuliers. La force vive de sa parole créatrice éclate de tous ses droits de survivre à la mort tant rêvée, et que nous écoutons lui survivre, en souvenir de tant et tant de souvenirs et de son avenir pérenne parmi nous. Eis uma primeira tradução do texto inédito de Daniel Maximin: LÉON-GONTRAN DAMAS, Fogo sempre sombrio… Léon-Gontran DAMAS nasceu no dia 28 de março de 1912 em Caiena, na Guiana. Mudo por muito tempo na sua infância, faleceu em Nova Iorque no dia 22 de janeiro de 1978, de um câncer na língua. Entre esses dois mutismos, elaborou a sua obra: soluços de poesia rabiscados a giz sobre os muros do silêncio, da opressão e da indiferença. Seiva negra, sal negro, sumo e suor negros, de morte em vida, na terra dos párias, três rios, África, Europa, Américas: correm três rios nas minhas veias. Três continentes, adicionados de substrações: sem origem, sem genealogia, sem antepassados reconhecidos: abundância de origens perdidas sob a nudez original de uma tábua tornada rasa de traços seguros do passado. E o pequeno burguês de carapinha embarca em busca da verdadeira vida com: alma de empréstimo, corpo enfaixado, coração um longo suspiro. Assim a sua ação se exercerá até à morte através de muitas atividades disparatadas que levará a cabo com uma mistura de ardor, de diletantismo, de distância e de paixão, sempre impulsionado pelo fervor em recolher sem descanso as palavras de beleza e de revolta de todo o mundo negro, dessas culturas da África e da América que desejava abraçar a todas, defendê-las e difundi-las, de Paris a Dakar, de Harlem ao Rio, de Fort-de-France a Caiena. Homem fantasioso e patético, sarcástico e terno, magoado e sentimental, amante do amor, rapidamente atormentando-se por elas, foi durante toda a sua vida um mediador de poesia, a sua e a de todos os outros. Acreditando fortemente que ao poeta cabe conservar a palavra, a urgente, a frágil, a necessária, em graffitis lançados contra as muralhas dos egoísmos coletivos e singulares. A força viva da sua palavra criadora explode com todos os seus direitos de sobreviver à morte tão sonhada e que ouvimos a ele sobreviver, em lembrança de tantas e tantas lembranças e do seu porvir perene entre nós. (Tradução de LPA) A recepção de Pigments posta em perspectiva ao longo do tempo. Como foi recebido o primeiro volume da poesia da Negritude? Para responder à pergunta, consideremos por um momento os sucessivos prefácios redigidos para Pigments: cada um deles põe em perspectiva a sua recepção em diferentes momentos, desde a sua primeira edição, anterior, repetimos, ao poema manifesto da Negritude. Em 1937, no momento do lançamento do livro, em edição de autor, por uma pequena editora parisiense, [7] a apresentação do volume de Damas é assinada por um surrealista francês, o poeta Robert Desnos (1900-1945). Oito anos mais tarde, Robert Desnos morre de fome e de tifo no campo de concentração de Theresienstadt, na antiga Tchecoslováquia, dias depois do stalag ser libertado pelo avanço do exército russo. Autodidata e apaixonado por poesia, Robert Desnos aderira ao movimento surrealista muito cedo, com pouco mais de vinte anos, desde a década anterior, mais precisamente desde 1922. Nos anos 1924-29, Desnos é o principal redator da revista Révolution surréaliste mas rompe com o movimento quando André Breton (18961966) pretende orientá-lo em direção ao Comunismo. Depois das eleições em França de maio de 1936, que leva ao governo o socialista Léon Blum (1872-1950), Desnos faz parte do "Comitê de vigilância dos intelectuais antifascistas". Resistente contra a Ocupação alemã desde 1940, Robert Desnos é preso pela Gestapo, em Paris, em 22 de fevereiro de 1944 e deportado. Não conseguirá sobreviver ao fim da guerra. Seu curto prefácio ao volume, com apenas seis breves parágrafos, é uma declaração de guerra contra o burguês e o fascista. "Damas é um negro e reivindica a sua qualidade e o seu estado de negro". Na apresentação de Desnos, publicada - não esqueçamos disso - durante o governo do "Front populaire", os poemas de Damas são vistos como uma dádiva generosa feita à Europa por alguém que vem do outro lado do mundo, das periferias do continente americano: Esses poemas são também um canto de amizade oferecido, em nome de toda a sua raça, pelo meu amigo, o negro Damas, a todos os seus irmãos brancos. Um dom da savana à fábrica, da plantação à quinta, do banguê ao atelier europeu. [8] Em 1962, dezessete anos depois do fim da II Guerra, na edição de Présence Africaine, considerada definitiva [9] de Pigments, o prefácio é assinado por um intelectual e ativista belga, conhecido especialista de jazz, Robert Goffin (1898 -1984). O que é destacado agora é a presença da África e do gênio negro. A primeira frase do prefácio de Goffin é a seguinte: "O que me emociona é o bater do coração da ÁFRICA desenraizada que, com o final da escravidão, afirma mais do que nunca a sua profunda vitalidade criadora !" E mais adiante: Afirmando a perenidade da Terra-Mãe no sentimento de raça, que nada tem a ver com o racismo, com a vaidade, constitui una espécie de revanche e de justificação sobre a bestialidade e a vulgaridade dos povos carniceiros e exploradores que desprezo. Muito cedo, tive a revelação da escultura negra, essa arte que vem direto do coração e do instrumento cortante; e me alegrava quando o grande Apollinaire voltava a Auteuil para "dormir entre os seus fetiches da Oceania e da Guiné", esses deuses de uma nova esperança. Robert Goffin articula ainda, no seu prefácio, o guianense Damas ao poeta americano Langston Hughes (19021967) e aos "gênios" do jazz, Louis Armstrong (1901-1971), Duke Ellington (1899-1974), Bessie Smith (18941937) ou Billie Holliday (1915-1959), exemplos do "sangue fértil" africano que "inspirou" igualmente o poeta popular cubano Plácido, [10] o russo Alexandre Pouchkine (1789-1838), o francês Alexandre Dumas (18021870) ou o brasileiro Machado de Assis (sic) (1839-1908). No parágrafo seguinte, são evocados mais três escritores contemporâneos das Antilhas: o cubano Nicolas Guillén (1902-1989), o haitiano Jacques Roumain (1907-1944) e o martinicano Aimé Césaire (1913-2008). Falta talvez ao prefácio de Robert Goffin o sentido propriamente histórico. A negritude seria, segundo ele, uma essência que se transmite, no espaço e no tempo, pelo e graças ao sangue negro. Nessa edição de Présence Africaine assim como na seguinte, em 1962 e em 1972, o texto da quarta capa do volume, de autoria de Jacques Howlett (1919-1982), é provavelmente mais interessante. Tem como título: "En poésie, comme dans la vie". A negritude de Damas é vista então claramente não mais como uma "essência" mas como um existencialismo ligado a uma experiência de mundo e uma poética do quotidiano que incorpora ainda a distância crítica do humor: Próxima das quotidianas, das muito humanas palavras de revolta e de dádiva, essa poesia aberta escapa a todo cálculo e à complacência, conhece a distância do humor e dispensa as garantias quase oficiais das escolas. L.-G. Damas por alguns aspectos lembra os funâmbulos de Laforgue, o Sportin’Life de Porgy and Bess, mas o irônico mau rapaz é também um militante - um dos primeiros - da negritude. Há uma solidão de Damas, que não é apenas literária, é também a do clamor negro no mundo da opressão. Há o calor humano de Damas, que não é apenas mundano, mas o dos homens negros impondo a sua humanidade face à frieza branca dos antigos senhores. Consideremos por fim os dois textos que nos ofereceu o poeta Daniel Maximin (1947), ambos bastante recentes: o poema em versos livres faz parte do seu livro de poemas L’invention des Désirades [11] (Seuil, 2009) e o poema em prosa é inédito. Os dois textos estabelecem algo de novo e importante na recepção de Damas: uma verdadeira intertextualidade antilhana francófona e o que Antônio Cândido chamaria, entre nós, o início de uma coerência interna numa literatura recente. O primeiro poema "Damas, fé de quilombola" ("Damas, foi de marron", em francês) retoma, em filigrana, um importante debate poético entre Césaire e o poeta haitiano René Depestre (1926) sobre a poesia como "arma miraculosa" [12] e meio de escapar à servidão moral ou intelectual. Por outro lado, o texto de Maximin não só joga com os diferentes títulos da produção damasiana (títulos de poemas como "Limbé" ou títulos de volumes como Pigments, Black-label, Graffiti, mines de rien [13] etc.) como enraíza Damas no espaço geográfico que é o seu, o da Guiana francesa mestiça, entre o Amapá brasileiro e a Guiana holandesa (hoje Suriname) na extensão gigantesca do continente americano, com as suas muitas raças e sangues confundidos numa história de repressão/escravidão (não apenas negra) ou de servidão e sentimento de inferioridade introjectado pela educação oficial (Escola e Igreja), e sobretudo de anseio pela liberdade. O segundo texto, o poema em prosa de Daniel Maximin, inédito ainda, resume a trajetória humana de Damas entre dois mutismos e a sua poética, só aparentemente simples, na realidade extremamente sofisticada e sutil. Aponta ainda o seu papel fundamental de go-between incansável entre as culturas das Américas e da África. Nenhum dos outros poetas fundadores da poesia da Negritude se interessou tanto, como Damas, em recolher e difundir a produção de outros poetas em antologias que anunciam à distância até mesmo o movimento da "crioulidade" ("la créolité") de Glissant (1928-2011) e seus sucessores, Patrick Chamoiseau (1953) e Raphaël Confiant (1951), por exemplo. [14] Daniel Maximin sugeriu-nos, um dia, em conversa que fosse mudado o título do seu poema em prosa "LéonGontran Damas, feu toujours sombre…" para " Léon-Gontran Damas, colporteur de feu…". Hesitamos em aceitar a sugestão porque ambos os títulos nos permitem compreender e explorar duas coisas diferentes: por um lado, a filiação do seu texto que reescreve um poema-túmulo de Césaire dedicado justamente a Damas [15] e por outro lado, a significativa carga mítica do elemento fogo no imaginário e na literatura antilhana. Existem dois grandes mitos coletivos na zona das Caraíbas, o do fogo [16] e o do sal. O poeta haitiano René Depestre (1926), numa frase muito elíptica, captou de forma brilhante a originalidade do Prometeu caribenho, chamando-o "voleur de sel " (ladrão de sal) mais do que ladrão do fogo, por amor dos homens (daí o seu outro nome em grego, o Filantropo, literalmente: o que ama os homens). Em Haiti, do ponto de vista popular, o sal é o alimento que pode resgatar o zombi (o morto-vivo) e o transforma de novo num homem. O sal é assim um mediador para a liberdade. Daniel Maximin o sabe muito bem quando saúda Damas no seu segundo parágrafo como "Seiva negra, sal negro, sumo e suor negros, da morte em vida". Essa saudação evoca a obra de Damas como "arma miraculosa" contra a zombificação. Mas o outro título sugerido por Maximin para o seu poema em prosa também é revelador e nos permite compreender um mecanismo corrente, do ponto de vista antropológico, do imaginário antilhano, a inversão da inversão: "colporteur de feu". Uma tradução possível para a expressão seria mercador ou mascate de fogo. Façamos um pequeno desvio ("détour"). Colporteur, na França do Antigo Regime, era o mercador ambulante de pequenas mercadorias e de quinquilharias, que ia de aldeia em aldeia, vendendo-as. [17] Daí o seu sentido pejorativo atual de divulgador de falsas notícias, de espalhador de boatos. Mais uma vez, encontramos a inversão da inversão no universo cultural e no imaginário da Negritude: reivindica-se um sentido que se tornou negativo transformando-o radicalmente em positivo. O mesmo sucedeu com a palavra negro, por muito tempo claramente ofensiva, com a qual e a partir da qual Césaire cunhou Négritude em francês. Haveria assim dois tipos de fogo: o fogo destruidor (o fogo da natureza: o do vulcão ameaçador, [18] por exemplo) e o fogo que funda a cultura, transmitido de homem a homem, que coze a comida e aquece a casa. Damas, "colporteur du feu" (o que carrega o fogo, o difusor do fogo), é o novo Prometeu, o Filantropo, que carrega, preserva e distribui a chama da palavra libertadora. Ele é ao mesmo tempo o que traz o sal que liberta o zombi da sua servidão obscena em vida e o que difunde o fogo da palavra que resgata. Uma das revistas culturais da Guiana francesa se intitula La Torche. O tema prende-se, na verdade, à tocha de resina levada de braço em braço e que aparece num poema inédito de Damas, escolhido como seu epitáfio e transcrito sobre o seu túmulo no cemitério de Caiena. [19] Daniel Maximin, também ele editor de poetas e de escritores, ao saudar Damas, incorpora, no fecho do seu poema em prosa, o epitáfio do Outro. Negritude senghoriana, negritude americana. A transmissão de valores culturais comuns através da participação de uma determinada biologia, segundo a ideia presente no prefácio de Goffin, fecha e simplifica a negritude no âmbito estreito de uma conexão direta entre três conceitos, no fundo, díspares: raça, civilização e cultura. O primeiro liga-se a parâmetros puramente genéticos; o segundo apresenta já um conteúdo de elaboração psicológica, sociológica e cultural, e o terceiro, o mais complexo, pode, em parte, compreender o conceito de civilização, mas remete ainda a algo mais, que diz respeito especificamente ao indivíduo, indicando aquele conjunto de conhecimentos que concorrem para formar a sua personalidade, refinando as suas capacidades racionais. O conceito de negritude surge, no entanto, melhor articulado do que aquele resumido na introdução entusiasmada de Goffin, seja pela contribuição original de individualidades distintas, seja pela substantiva incongruência entre o dato genético e a-histórico de raça e civilização, historicizando-se num determinado espaço geográfico pelo termo cultura. Segundo a visão etno-biológica, a negritude seria como uma ideia-agente que existe a priori, inscrita na carne e no sangue de quem é negro; no entanto, desde as suas primeiras conceituações teóricas, apresenta-se mais como simples e concreto princípio federativo, aplicado a posteriori sobre grupos humanos muito diversos, mas ligados por um objetivo comum. É o que se pode depreender da afirmação de Damas ao apresentar l’Étudiant noir (1935), revista que pode ser vista como elemento inicial do futuro movimento: l’Étudiant noir, diário corporativo e de combate, tinha por objetivo o fim da tribalização, do sistema de clãs em vigor no Quartier Latin. Deixava-se de ser estudante essencialmente martinicano, guadalupeano, guianense, africano, malgache, para ser apenas e somente estudante negro. Fim da vida em círculo fechado. [20] O ano de 1935 vê assim, em Paris, reunidos os três maiores expoentes do futuro movimento da Negritude - Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor - empenhados no que Césaire definiria como "a busca do homem negro", [21] saídos do horizonte rígido e fechado do domínio colonial francês que legitima a dependência politica e econômica graças à teoria da tabula rasa, presente sobretudo em África. Também no espaço da América das Plantações (que se estende, no Novo Mundo, do Sul dos Estados Unidos até o Sul do Brasil, incorporando igualmente todo o arco antilhano das ilhas grandes e pequenas) os homens de cor, descendentes do tráfico atlântico de escravos que durou pelo menos três séculos, considerados não como cidadãos de segunda classe mas como objetos animados, sofriam os reflexos da mesma ideia fornecendo mão de obra barata. Assim, muitos americanos (não esquecer que Césaire e Damas nasceram, ambos, em terras da América e só vêm a conhecer a Europa no final da adolescência), descobrem a África através do contacto com estudantes africanos em Paris. O inverso também é verdadeiro: os senegalenses, por exemplo, descobrem-se africanos com os negros que vêm das Américas. Inspiram-se, todos, uns aos outros: descobrem, lêem e comentam não só escritores negros americanos que, nos anos 20, proclamaram o advento do New Negro e deram vida ao movimento da Negro Renaissance do Harlem, como os ensaios de etnólogos e antropólogos africanistas: cunham aos poucos o conceito e a palavra Negritude que celebram as tradições africanas ou, em alguns casos, a imagem ideal que fazem dessas tradições e culturas ancestrais. A repetição encantatória de "Devolvam-me as minhas bonecas negras", no poema "No limbo" [22] de Damas, publicado, pela primeira vez, no nº 3 da revista l’Étudiant noir, em março de 1935, cujo refrão será intensificado em versões sucessivas do poema, põe a questão de fundo da inversão dos valores: os cânones clássicos ocidentais, de beleza e de moral, são desqualificados até ao desprezo (catins blêmes) enquanto são celebrados todos os aspectos da vida quotidiana e da expressão cultural, denegridos pelo colonizador. la coutume, les jours, la vie, la chanson, le rythme, l’effort, le sentier, l’eau, la case, la terre enfumée grise, la nuit, le ciel, la sagesse, les mots, les palabres, les vieux, la cadence, les mains, la mesure, les mains, le piétinement, le sol. [23] Quanto ao termo "negritude" propriamente dito, Senghor atribui explicitamente a invenção ao amigo Aimé Césaire, [24] enquanto este afirmará que o conceito foi fruto de criação coletiva. Ambos, no entanto, reconhecem a sua primeira e plena realização no volume de Pigments, de Damas, publicado em 1937. A palavra aparece, pela primeira vez, na primeira versão do Cahier d’un retour au pays natal, de 1939 numa revista que virá a desparecer, Volontés. Até o fim dos anos 60, os três poetas tomam a palavra para dizer o que entendem por negritude. Senghor é o que mais frequentemente se explica em textos de ensaios literários e/ ou políticos; Damas o faz em particular na sua segunda antologia e Césaire responde a inúmeras entrevistas que se repetirão até o final da sua vida. Senghor o faz inicialmente de forma sintética: "Maneira de exprimir-se do Negro. Caráter negro. O mundo, a civilização negra". [25] Entretanto algumas diferenças fundamentais são evidentes entre a concepção africana da negritude, ontológica e culturalista, e a americana, baseada na concretude da vida e na adaptação progressiva e inovadora dos escravos africanos ao Novo Mundo. Uma concepção, a africana de Senghor, tende para o essencialismo, a outra, a americana, enraíza-se na carne de uma coletiva e dolorosa, criativa e progressiva experiência de migrante forçado e nu que reconstrói e recria seus valores culturais através do sincretismo e de novos e inéditos encontros culturais. Notese enfim que o tráfico e a escravidão não só aproximou e misturou, por vezes, nas plantações americanas, etnias e culturas diferentes e afastadas de África, como propiciou inclusive o contato e a mestiçagem com os diferentes grupos indígenas americanos. Para Senghor a negritude é "o conjunto dos valores culturais da África negra", [26] ao qual no entanto reconhece um aspecto dinâmico que se explicita na constatação de uma evolução da "Negritude das fontes" (Négritude des sources), isto é, a que precede a chegada dos brancos em África, em direção a uma Negritude "instrumento eficaz de libertação", fundada na realidade dos estudantes africanos em Paris, no século XX. Essa dimensão histórica não é, entretanto, claramente analisada, enquanto é teorizada a ideia de uma particular atitude afetiva em confronto com o mundo, nascida da emoção, o caráter mais evidente da negritude, segundo Senghor. A emoção é determinada pelo ritmo cósmico ao mesmo tempo que o determina, fazendo surgir a "encantação que faz ascender à verdade das coisas: as Forças do Cosmos". [27] Para Damas e para Césaire, através da Negritude, recompõe-se o puzzle disperso da sua história coletiva, recuperando o passado brutalmente rasurado, o espaço ancestral da África, ao mesmo tempo, mãe e madrasta. O terceiro anel vai remodelar a relação dual entre dominador (França) e dominado (escravo e colonizado nas Américas das plantações). A negritude permite empreender um percurso de verdade: retira ao fenômeno da servidão/inferioridade o seu caráter inelutável no qual a haviam posto as ideologias coloniais, restituindo-lhe a sua plena dimensão histórica, feita de determinações econômicas e politicas mais do que o primado de uma cultura sobre as outras. Para os dois poetas "americanos" o percurso exige a tomada de consciência do advento do negro à História. Assumir a escravidão e o estatuto de migrante forçado e nu, com tudo o que isso implica em termos de aviltamento da pessoa humana, não é senão o início da sua história na América, abrindo espaço na História do mundo para assumir o seu futuro. Destruir a imagem negativa do negro implica igualmente afirmar as suas qualidades próprias que, para Césaire, podem corresponder à sua maneira de acolher o mundo, [28] tal como aparece no final do seu poema Diário de um retorno ao país natal, [29] enquanto que, no que diz respeito a Damas, é-nos mais difícil fornecer uma definição precisa. Falta-lhe, de fato, uma visão unívoca, como se a sua procura incessante da expressão de uma negritude englobante fizesse emergir muitos e muitos modos diferentes, não só no tempo como no espaço, de ser negro. Embora permanecendo de um modo geral e durante toda a sua vida, fiel ao conceito forjado na sua juventude, Damas parece estar mais próximo ao mundo contemporâneo porque as diversas histórias que encontra e contra as quais se embate, adquirem todas dignidade e não buscam uma síntese num pré-tempo, mas são oferecidas ao leitor para a elaboração da História futura. Enfim, na trajetória intelectual de Damas, o conhecimento do Brasil com as suas ambiguidades e sua complexidade em massa folhada (a expressão é de Lévi-Strauss), parece ainda matizar as suas ideias sobre a negritude. [30] O estudo das suas diferentes antologias confirma igualmente essa instabilidade do conceito em Damas: a instabilidade corresponde, na verdade, a uma atenção especial às situações particulares e à diversidade das mestiçagens e dos encontros culturais imprevistos e imprevisíveis. O testemunho de Marieta Campos Damas, depois da morte do marido, confirma, de certa forma, a disposição do poeta de não se fechar em dogmas nem em conceitos definitivos. Numa magnífica entrevista realizada por Valentin Y. Mundibe, [31] em outubro de 1973, cinco anos antes da morte do poeta, Damas, lançando um olhar para trás, evoca as três diferentes personalidades que criaram a negritude: A negritude foi um projeto, um projeto espontâneo: foi a reação de uma categoria dada de indivíduos, num determinado meio, num momento preciso da história. Quando digo que foi a reação de uma categoria de indivíduos, é preciso também observar a diferença entre esses indivíduos: vinham todos de países diferentes. Assim, quanto a mim, nada tenho de insular. É preciso, na realidade, considerar a geografia. Nasci na Guiana francesa, integrado no meu continente como uma pepita na sua ganga. Césaire vem de uma ilha vulcânica onde o problema geográfico é real: o Martinicano pertence a um grupo que se dispersa e que, por causa disso, traz consigo uma dupla nostalgia: o homem das ilhas quando está na sua ilha sonha em partir; no exterior, sonha com a sua ilha. O que dá nascimento ao Cahier d’un retour au pays natal. Quanto a Senghor, ele é filho de um continente. Mas esse continente, ele só o descobrirá plenamente ao nosso contacto, em Paris. Nascido no Senegal, Senghor não podia, como outros Senegaleses, sentir-se plenamente integrado no Senegal que, na época, era a única colônia francesa cujos nacionais eram considerados cidadãos franceses desde que fossem originários de quatro comunas: Saint-Louis, Gorée, Rufisque, Dakar. Nascido em Joal, em Casamância, cerca de 50 quilômetros de uma dessas comunas, Senghor não pertence nem mesmo à etnia que, do ponto de vista numérico, religioso e tribal, é a mais importante: a dos Wolofs. Ele é Serere, uma raça à parte, como os Sarakolés, os Bambaras… Enviado a Dakar, por pouco não se fez padre. Em suma, é em Paris que ele vai descobrir-se Africano, plenamente Africano. É em Paris também que encontra um meio muito mais liberal do que o meio de Dakar, que lhe permitirá ser ele próprio: um meio laico onde será fácil falar e ouvir falar livremente. [32] Apresentando Pigments/Pigmentos. O título do primeiro volume de Damas, Pigments/Pigmentos, coloca de saída a obra no âmbito da literatura militante e da Negritude. Entretanto, se bem que o tom de poesia de luta seja incontestável, as modalidades com que se apresenta são totalmente originais, não esgotando o sentido global da obra. De certo modo, não deixa de ser problemático comparar um longo poema de sopro claramente épico-dramático, com sequências e episódios que se articulam uns aos outros, caso do Cahier de Césaire, com uma coletânea variada de três dezenas de curtos poemas, mais incisivos e nervosos, por vezes líricos ou irônicos, escritos e reescritos em diferentes momentos. Diferentemente, por exemplo, do Cahier/Diário, de Césaire (primeira edição: Volontés, 1939), onde prevaleceria, pelo menos nos primeiros grandes movimentos do texto, a preocupação com o negro-denegrido-dominado-colonizado-explorado, o leitor tem imediatamente, em Damas, a percepção da preeminência do olhar que se observa como indivíduo mais do que membro de uma coletividade. Não que o nível de atenção de Damas diante da situação do homem de cor e da relação dominante-dominado seja menor, mas seu enfoque passa pela experiência pessoal, seu pensamento e seu corpo. Em suma, Damas é sobretudo lírico: seu ponto de vista parte sempre do seu eu. A nota pessoal estava já inserida no título inicial previsto para o livro, - Névralgies (Nevralgias) - segundo contrato assinado no dia 17 de março de 1937, com o editor Guy Lévis Mano, título que será rapidamente substituído, como se pode deduzir de uma série de elementos. A consulta dos manuscritos e dos "tapuscrits" [33] revela-nos as diferentes etapas do processo: em carta do dia precedente (16 de março), o autor pede que o volume saia nos primeiros dias de abril; a 17 assina o contrato substituindo a data datilografada de término de redação (presumivelmente 5 ou 8 de junho de 1936: não se lê bem o dia embora o ano e o mês estejam bem claros) [34] mas ainda não modifica o título; o imprimatur é dado no dia 20 de abril e o título no frontispício é agora Pigments. [35] Não sabemos quando se deu exatamente a mudança do título, mas é muito provável que ele surja de uma discussão entre editor e autor, à qual se juntou a voz do Robert Desnos cujo prefácio versava sobre o tema do renascimento negro. [36] A orientação original do poeta era portanto uma "narrativa" pessoal, não propriamente articulada num longo texto contínuo mas através de notações soltas que se acumulam, com a qual, talvez, outros pudessem identificarse inferindo assim um significado coletivo. O projeto individual de Damas provoca grande impacto e ganha significado político – aumentado evidentemente pelo prefácio exaltado e "engajado" de Robert Desnos – num período em que a França tem ainda bem firmes as rédeas do seu império colonial. O surrealista Desnos, com o seu prefácio, realça no volume uma leitura ideológica, pertinente evidentemente mas não única. A negritude é, com efeito, um dos temas principais de Pigments articulando-se em duas linhas principais: a recuperação da ascendência e do passado africanos, e a evocação da situação concreta do homem de cor na França e na sua colônia americana da Guiana francesa. [37] A revalorização da África perdida e das suas culturas ancestrais é particularmente significativa naqueles anos em que descendentes longínquos de escravos das Plantações americanas, sobretudo os que já pertenciam à burguesia mestiça (não só da Guiana francesa como de outras Antilhas negras), reencontram e restauram os elos rasurados com aquela parte ocultada de si próprios que os tinham relegado a uma condição de inferioridade. Inferioridade inclusive introjectada num doloroso processo em que o mulato se considera superior ao negro porque feliz e ironicamente embranquecido física e culturalmente. O percurso de Damas é um verdadeiro caminho de Damasco [38] que reintegra o seu ser física e espiritualmente dentro da História, a sua história de mestiço americano. Para o autor franco-americano-antilhano que cresce em contexto de diglossia (ou seja entre duas línguas, francês e crioulo - , línguas com hierarquização que separam, de modo oculto mas efetivo, afeto e razão, sensibilidade e possibilidade de ascensão social) e que reivindica a sua tríplice ascendência (americana, europeia, africana) – "três rios correm nas minhas veias", como dirá em "Black-Label", de 1956 – a explicitação desses valores corresponde a uma operação de verdade totalmente original naquele contexto. Quanto à reescritura da oralitura (para empregar o termo cunhado pelos críticos haitianos), Pigments não recorre voluntariamente a expressões do crioulo [39] nem introduz personagens do folclore tradicional como ocorrerá mais tarde nos seus contos (Veillées noires, 1943) e em Black-Label, mas utiliza, sem nunca cair no exotismo fácil da "literatura de rede", [40] uma linguagem popular e alusiva por vezes bastante hermética para quem não conheça a Guiana. Damas recorre sobretudo a um ritmo muito particular, que o poeta aperfeiçoará progressivamente em sucessivas variantes. Esse ritmo corresponde por um lado, ao dinamismo da palavra oral e por outro lado, à segmentação da palavra daquele que balbucia ou mesmo gagueja, retornando ainda uma vez à experiência pessoal de um poeta que conheceu sérios problemas de afasia, totalmente incapaz de falar na primeira infância. O despertar da consciência negra relaciona-se assim à própria origem do horror da escravidão e da proclamação da dignidade de todos os que dela foram vítimas, embora essa proclamação não assuma a forma de uma declaração solene, passando antes através do concreto quotidiano da vida individual e coletiva, até mesmo através da gestualidade característica de cada grupo social. O poema "Solde" põe em evidência, por exemplo, o embaraço e o desconforto do colonizado, vindo de um país quente da floresta amazônica, quando se veste à europeia, encena o ridículo e revela verdadeiro sofrimento físico. Nenhuma motivação transcendente, mas o absurdo surge, evidente, do próprio fato. Diz-se então o contraste entre o absurdo de uma roupa que tolhe os movimentos e a beleza do corpo nu, jovem e musculoso, como o representado na xilogravura de Masereel no frontispício da edição de 1937. A vestimenta faz parte integrante da norma que rege as relações inter-individuais: vestir-se à francesa ou à europeia quando se vive nos trópicos ou perto do Equador, cercado pela humidade da floresta amazônica, não é estranho à adesão a um cânone ocidental, equivale à assunção de um estilo de vida. É isso que o poeta adulto censura ao severo ambiente em que fora educado, menino, no meio da burguesia mulata de Caiena. A educação recebida induz a dissimular o corpo e as suas funções: uma risada deve ser discreta, um eventual bocejo escondido pela mão, o pão não será cortado ou mordido como expressão de voracidade animal mas paciente e delicadamente partido em pequenos pedaços, sons físicos como o arroto ao comer devem desaparecer etc. Em Pigments, o protesto se ergue essencialmente contra a família que o educou para modos e comportamentos rígida e estritamente franceses; em outras obras poéticas, Damas revela-se contra a Igreja e a escola igualmente marcadas por lembranças de censura e controle permanentes. Do outro lado dos mulatos e em oposição a estes, estão os negros e os marrons (= quilombolas). [41] Os primeiros são essencialmente os incultos/analfabetos que não frequentaram a escola, nem fazem parte da burguesia mestiça que se imagina/se crê branca; os segundos são os descendentes dos que afrontaram os perigos da fuga à escravidão e vivem, de um modo geral, em grupos mais ou menos isolados, em igarapés ou ao pé dos rios amazônicos. Os dois grupos são emblemáticos da dignidade originária dos africanos que chegaram ao Novo Mundo. A sociedade colonial se desenvolve buscando até o controle das funções orgânicas do corpo, submetido a múltiplas regras de ordem sócio-cultural, suprimindo não só qualquer liberdade de expressão mas sobretudo o conhecimento do que se é e do que se foi ("Ils ont…"). Por outro lado, o volume de Pigments começa a usar o corpo como lugar e instrumento da própria reivindicação. O erotismo, que surgirá ainda mais a descoberto em outros volumes de Damas, provoca aqui a aparente compostura da capital francesa num poema como "Dans ton attente", cujos subterfúgios e jogos sibilinos serão descodificados mais adiante nas notas à tradução. Encontram-se aqui acenos de ordem diversa, desde o apelo às "bonecas negras" do poema "Limbé", em oposição às "marafonas pálidas", contraponto que parece mais uma declaração ideológica que um real impulso erótico-sensual, até a indiferença de uma mulher que remete o narrador para uma partida de sonho, em resumo uma negação do sonho ("Captation"). Ou ainda da alusão à "pornografia" da cultura que se presume superior ("Shine") até a evocação dissimulada do mundo dos amores tarifados, de hotéis perto da Gare du Nord com horas marcadas e com a promiscuidade das paredes finas do poema "Dans son attente", onde o episódio da inocência de "donzelos" abre uma série de indagações sobre a verdadeira natureza daquelas relações. O ódio ("la haine") da primeira versão do poema "Il est des nuits", transformado depois em "a dor" ("la peine"), são variantes alternativas do mesmo sentimento de frustração e encontram a sua causa profunda igualmente nas relações difíceis e indefinidas determinações de gênero, do qual o verso "cortar o sexo dos negros/ para fazer velas para as suas igrejas" ("SOS") é a brutal e áspera expressão de um sentimento de expulsão do humano que toca todos os aspectos da pessoa. O corpo humilhado e acorrentado, ofendido e marcado, vendido e comprado, é pois o Leitimotif do volume, a partir do corpo do escravo que perde, na travessia do Oceano Atlântico, toda e qualquer referência geográfica e física, afetiva e cultural, e que dormirá no final da viagem numa senzala onde nada mais lhe pertence, isso se não for jogado pela murada dos negreiros para pasto de tubarões. O volume de Pigments se inicia pelo poema "Ils sont venus ce soir" que evoca a chegada, no tempo passado, dos mercadores para depredar a África dos seus filhos e continua com a tomada de consciência que o presente da colônia perpetua o tempo da servidão com o emprego de mortos vivos ("zombies"), o "bom negro" que "deita na sua enxerga dez a quinze horas de fábrica" ("Rappel"). A lembrança das deportações de outrora e do travessia do Atlântico, tema central igualmente de Black-Label, é seguido pela denúncia das difíceis condições de vida no tempo presente na colônia. Daí deriva a decisão de recusar, politica e ideologicamente, a assimilação não só porque Damas rejeita a ideia da superioridade da cultura francesa sobre a dos povos que domina, mas ainda porque o direito de cidadania não é "plaidorie sentimentale", [42] mas um conjunto de atos concretos, de reais possibilidades de construir a sua própria vida. Isso é mostrado através de uma pequena cena quase teatral em que um personagem, sem nome, de norteamericano dialoga com o jovem viajante de Retour de Guyane no terraço do Hotel dos Palmistes [43] de Caiena: - Vocês têm o ouro, [44] a terra, o mar, os lugares, os homens… Destes vocês fazem cidadãos. Nós teríamos feito milionários. O caráter concreto do olhar desse estrangeiro, vindo da América anglo-saxônica, se contrapõe à melíflua e ineficiente compaixão pós-escravagista da França que, em nome da República, relegava, de fato, os povos das suas colônias para posições subalternas. É interessante também o diálogo que se segue: - Há milionários, lhe disse eu. - Cod-fish aristocracy, me respondeu ele como expressão de desprezo, retomando o seu whisky que não levam um centavo à comunidade: são mais negros que o boy que me serviu o Canadian Club… O norte-americano de passagem por Caiena identifica e reconhece, ao primeiro olhar, a posição ao mesmo tempo gregária e subalterna da burguesia local, incapaz de imaginar e impulsionar o desenvolvimento do território que ainda não é um pais. Falsa burguesia, no fundo, preocupada só em parecer, formada de funcionários e clientes da administração francesa, cujo esboço será retomado e desenvolvido mais tarde por Frantz Fanon no seu livro capital Pele negra, máscaras brancas. [45] Numa poesia que abandona o tom exótico e regionalista dos seus predecessores antilhanos, Damas põe em cena os temas que assinalam a via da descolonização e da independência de muitas regiões do mundo. A Guiana, no entretanto, em 1946, no imediato pós-guerra, liga-se ainda mais estreitamente à França, ao tornar-se, por lei, [46] um DOM ("Département d’Outre-mer", Departamento de além-mar, exatamente como a Seine ou a Garonne) sem empreender primeiro qualquer iniciativa para quebrar a cadeia da assimilação, então preocupação constante do poeta: "Tudo o que me chateia em grandes letras/colonização/ assimilação/ e o que se segue" ("Pour sûr"). O volume se fecha sobre um último tema: a lúcida evocação da França dos anos 30, à sombra da guerra civil espanhola e da subida, em 1936, do primeiro governo socialista da III República, chefiado por Léon Blum. A paisagem humana, os ecos das greves, o canto da Marselhesa e da Internacional, a população que se angustia e até os ventos da guerra que se anunciam no horizonte são observados por um olhar ao mesmo tempo de dentro e de fora, observador atento ao mesmo tempo partícipe. Em suma, a poesia damasiana é um testemunho excepcional sobre o ambiente em que vivem os jovens estudantes de cor em Paris, nos anos 30, sobretudo dos que vêm das colônias do ainda imenso Império colonial francês. Constitui uma leitura original dos anos que precederam à II Guerra Mundial, é uma auto-análise capaz de fazer emergir histórias, pulsões e sentimentos não-ditos, propõe, melhor: sugere a transferência da tomada de consciência de um indivíduo para o coletivo. Assim a obra se conclui convidando, com ironia devastadora, os Artilheiros senegaleses – tropas coloniais formadas sobretudo de soldados negros de origem africana a que se juntam magrebinos – a invadirem e libertarem o Senegal. Não se trata de um discurso geral e abstrato mas, para além do apelo à tomada de consciência, da sua participação na repressão de porções inteiras do planeta, um convite específico de invasão do seu próprio país para o refazerem, como artífices da sua história. Por fim, segundo Daniel Maximin que reivindica não só uma "conivência" com Damas mas também o propósito consciente de dialogar com a sua obra, o Guianense é o grande poeta do amor (infeliz, é claro): [Damas] é um dos menos conhecidos, um dos maiores poetas deste século no nosso Terceiro Mundo e na nossa poesia caribenha, o companheiro de Césaire, de Senghor. Ele é para mim o poeta da sinceridade absoluta, do desnudamento, com o qual tento dialogar. O único que ousou falar de amor no meio da descolonização… [47] Traduzindo Pigments/Pigmentos ou a descoberta de uma poética entre oralidade e reescritura. O volume de poemas Pigmentos de Damas tem uma história. É composto por um conjunto de poemas (32 ao todo), escritos e reescritos, em alguns casos, ao longo de anos: o número de correções não é, no entanto, muito alto se consideramos, por exemplo, a passagem do volume de Graffiti a Névralgies. O volume de 1937, reeditado em 1962, com um novo prefácio de Robert Goffin, constitui uma obra precursora de temáticas e de formas de linguagem inovadoras, que explicam até certo ponto a censura e a interdição impostas pelo governo francês. Como vertê-lo para uma outra língua, igualmente enraizada nas Américas, continente de grande e radical mestiçagem cultural? Alguns poemas esparsos de Damas já foram apresentados em revistas ou encontros brasileiros, traduzidos por Marieta Damas [48] e por mim; [49] mais recentemente, a excelente revista digital Agulha, [50] de Fortaleza, propõe uma introdução à poesia do guianense aos seus leitores. De um modo geral, a escolha recai sempre sobre os mesmos poemas, os mais musicais e os mais explícitos. Em suma: os mais acessíveis e os menos polêmicos. Traduzir um poema é procurar ler um determinado texto literário e avaliar a pluralidade de textos que nele se refletem e se respondem. Por outras palavras: é lançar sobre a obra poética um olhar que descobre e recria sentidos. Por outras palavras: tentar ainda compreender o projeto do autor, o conjunto em geral e o contexto em particular, perceber as estruturas imaginárias que o informam e nas condições de historicidade do tradutor (isto é, sua participação em um determinado universo cultural outro) reconstruir, em outra língua, um sentido ou uma teia de sentidos. Relacionando-se com essas duas noções complementares de leitura e reescritura, surge ainda a alteridade. Esta se impõe a cada momento ao tradutor nos textos aparentemente mais simples ou transparentes, na passagem, por exemplo, de uma língua com apenas dois verbos auxiliares para uma outra com maior número de auxiliares que permitem novas ou outras conotações. Note-se ainda que as noções do eu e do Outro, de maneira subjacente, ocupam um lugar central na obra de LéonGontran Damas; por outras palavras: o problema do eu (gêmeo frágil que sobrevive no entanto à morte precoce da irmã gêmea, órfão muito cedo de mãe, descendente de três "raças", nascido e criado na família materna da burguesia mulata de Caiena, com uma infância caótica, vivendo em regime de diglossia, colonizado, residindo por longos períodos em outros países, grande frequentador dos cabarés antilhanos ou afro-americanos [51] em Paris etc.) e do Outro. A alteridade dá conta das mais variadas formas de diálogo e enfrentamento, de ambiguidade e recusa, de assimilação e distinção radical, de sofrimento e revolta, de amor e ódio que fazem parte do texto de Pigmentos. E o país natal de certo modo ainda informe – ligado ao mesmo tempo ao arco marítimo das Antilhas (francesas) e fortemente encravado no espaço sem limites e amazônico ao Norte do Brasil, colônia penal até os meados do século XX [52] e território ainda não totalmente explorado, [53] surge como uma das formas da alteridade. País-alteridade, outro coletivo, tanto do ponto de vista temporal como espacial, para o qual o poeta sonha descobrir, através da sua poesia e da sua obra em prosa, um corpo imaginário e fundador, um contorno mais preciso e mais verdadeiro e, sobretudo, uma coerência interna. Ao ler pela primeira vez o volume de Damas, antes mesmo de conhecer a Guiana, a tradutora projetou sobre o espaço ainda desconhecido o que vira antes, em várias viagens às Antilhas francesas, na Martinica ou na Guadalupe. A presença do continente na sua imensidão e na pujança da sua natureza [54] foi uma grande surpresa: não era mais o espaço circunscrito e fechado de uma ilha pequena, surgida do mar provavelmente de uma grande erupção vulcânica em tempos imemoriais. [55] Dizer-se a si próprio e dizer o seu país, foi o desejo mais profundo de Damas. Mas traduzir é também, para o tradutor, assumir a sua diferença, como indivíduo e membro de outra cultura. É verdade que somos, todos, enquanto leitores, estranhos ao texto uma vez que ler de verdade supõe a apreensão de uma certa linguagem, melhor: de uma poética. Mas leitor e estrangeiro, o tradutor o é duplamente pela sua língua e diferença cultural; ele o sente como desafio e dificuldade, riqueza e limitação. Enfim, o tradutor escreve para outro ainda mais estrangeiro porque sem acesso ao texto na sua língua de origem: daí a sua função de mediador, de go-between diriam os antropólogos. A mediação, na presente edição bilingue, quer ser avaliada e apreciada. Há na verdade dois tipos de tradução: a que implica em esforço de adaptação da obra à cultura do tradutor e do leitor potencial; a que sustenta, em outra língua, o estranhamento do original. Transparência e adaptação, estranhamento e opacidade: privilegiar o sentido (e portanto a simples informação) ou recriar o original a partir de um trabalho sobre a própria língua do tradutor/leitor. A tendência geral na versão para o português dos poemas de Damas foi manter e explorar o estranhamento, sem condescendência para com o leitor, nunca desejado ou imaginado como simplório, passivo ou superficial. A poesia de Damas, aparentemente muito mais simples e direta do que a de Césaire, coloca problemas de tradução, totalmente imprevistos à primeira leitura. Problemas que exigem negociação entre duas línguas (francês e português), entre duas oralidades e duas culturas mestiças porque enraizadas em terras do Novo Mundo. Vejamos inicialmente o problema a partir de um único exemplo. A seguir abordaremos outros temas em conjunto. Inicialmente, lembramos ainda ao nosso leitor que cada língua tem um limite diferente entre o que é conveniente ou inconveniente. Por outras palavras: a linha da censura interna é flutuante, desloca-se de um universo cultural para outro. Depois de viver vinte anos em Lisboa, apreende-se isso ao longo do tempo, mesmo quando se trata de variantes semânticas menores da mesma língua materna. Palavras tão simples e corriqueiras como puto, moço/moça, tio/tia têm conotações muito diferentes, em português, dos dois lados do oceano. Um puto brinca na rua: o lisboeta ou qualquer português emprega a palavra no sentido latino que também existe no italiano (un putto), inclusive na pintura (i putti, ou seja, os anjinhos que cercam a Virgem em quadros religiosos); puto é apenas uma criança pequena do sexo masculino, nada tem a ver, na vida corrente, com a mulher de má vida. Em suma, para um português, puto não é, hoje, o masculino de puta. Um dos mais belos romances da velhice de Machado de Assis, Memorial de Aires, começa por uma cena em que uma menina pequena diz "olha aquele moço que está rindo para nós" e o velho conselheiro Aires que retorna enfim ao Rio de Janeiro, depois de uma carreira diplomática, comenta longamente com bonomia a palavra moço: [56] a mesma palavra, em Portugal, tanto no masculino como no feminino, guarda ainda a conotação, vinda dos tempos medievais ou quinhentistas de "criado"/ "criada" do paço, inexistente para os falantes brasileiros, inclusive para o nosso Machado. O que dizer então do uso atual de tio / tia anteposto ao primeiro nome de quem não é nem tio nem tia de verdade, o que, no Brasil, é sempre sinal de familiaridade, de gente que veio da periferia ou da favela, ou então de crianças muito pequenas no Jardim de Infância, [57] enquanto em Lisboa, as "tias" da linha de Cascais corresponderiam às "grã-finas", gente bem e endinheirada, da Barra da Tijuca? Senhoras que frequentam as páginas de revistas femininas de Portugal sentem-se honradas com essa denominação, inconveniente no Rio de Janeiro. O que se passa no interior de uma mesma língua que se espalha por dois ou três continentes diferentes, complica-se quando se trata de traduzir de uma língua (o francês) para o português. O limite da conveniência ou inconveniência, da pertinência ou impertinência, se desloca, sobretudo no que diz respeito à linguagem familiar ou popular. E a poesia de Damas reescreve literariamente a oralidade de forma quase invisível. Ela se embebe no ritmo e na dicção do coloquial, e dos jogos de palavras. Essa breve digressão serve de introdução à tradução de um poema de Damas, sutil e particularmente opaco, que não pode ser traduzido ao pé da letra de modo nenhum. O poema intitulado "Dans son attente", traduzido por "Enquanto te espero", com cinco estrofes, do ponto de vista semântico tem apenas uma ou duas palavras que seriam estranhas para um brasileiro: java (termo que pode ser encontrado em dicionários correntes) e oeillardes (uma gralha?, pensa logo o leitor apressado que corrige automaticamente oeillades). O poema, no entanto, só fará sentido se, recusando a solução fácil da "gralha", procurarmos um correspondente em português e explicitarmos discretamente o contexto cultural de um espaço em Paris, só percebido através de pequenos indícios quase invisíveis para o leitor apressado. O poema é uma transposição irônica e "canaille" [58] sobre temas tão graves como amor e sexo, política e repressão. Daniel Maximin comentou uma vez em conversa que o leitor não deveria ser autorizado a supor um engano gráfico (uma gralha) no poema. Apelar sempre para uma gralha é solução de facilidade. Biringanine Ndagano, autor de um livro importante e recente sobre Damas, [59] busca explicar a palavra como o resultado de uma operação de tipo gíria, no que tem certamente razão, mas a sua hipótese de uma possível origem portuguesa parece inverosímil: sua frase "dans cette langue nuit se traduit par tarde" (p. 155) não corresponde à realidade. Nessa língua misteriosa, "última flor do Lácio", a correspondência apontada só pode fazer sorrir um falante nativo de português. Por outro lado, Damas conhece muito melhor o inglês [60] do que o português, o que reforça, de certa maneira, a nossa hipótese de jogo verbal com outra língua. O texto pode ser compreendido muito sucintamente assim: o narrador espera a mulher amada num hotel de encontros mais ou menos clandestinos numa rua perto da Bastilha; ela está muito atrasada. Enquanto espera, ele se diverte imaginando um poema: ouve os sons da rua e dos quartos vizinhos num quarteirão popular. Cada estrofe parte de um desses sons. O poeta brinca com uma interpretação voluntariamente "canaille": a "java" [61] num rádio alto, as prostitutas que deambulam à procura de clientes, a iniciação ao prazer de rapazes ainda virgens (puceaux = donzelos), [62] as experiências eróticas de um fetichista de pés, estes têm aliás a forma de balas de açúcar cândi para chupar etc. Os ruídos são aqueles de um bairro popular com fábricas ao longe ("fumaças cilíndricas"), desempregados que protestam, hotéis de encontros rápidos ou clandestinos, a presença da polícia nas ruas. Em suma: o amor e a greve com o canto da Internacional [63] ao fundo, reprimida pelas forças da ordem. Para essa leitura do poema, parte-se da palavra enigma oeillarde (com r), que pode ser explicada de duas maneiras, aliás não excludentes. No primeiro caso, ela transforma uma expressão de gíria, corrente e documentada em textos literários; no segundo caso, é um jogo de palavras com uma língua estrangeira, no caso o inglês. A palavra misteriosa relaciona-se com oeil e o seu derivado oeillade (olho; olhadela, piscadela) evidentemente. Qualquer bom dicionário francês (o Larousse ou o Robert, ou ainda o Littré para textos clássicos) apresenta um longo verbete sobre oeil. Para oeillade, duas notações interessantes no Larousse: olhar furtivo indicando ternura ou conivência. Em muitos usos, oeil se relaciona com orifício, buraco (oeil d’un marteau, o orifício de um martelo; o olho de um ciclone etc.) OEillard, palavra técnica e masculina, é o orifício quadrado feito na pedra da mó para receber um haste metálica. Até aqui nada que possa orientar o leitor. Procuremos do ponto de vista literário e aí há coisas interessantes. OEil, como se vê, cobre uma área semântica muito vasta. Raymond Queneau [64] (1903-1976), no seu romance Zazie dans le métro (1959), narrativa de tom burlesco, cria uma personagem famosíssima, [65] uma menina de 9-10 anos que emprega indiferentemente "mon oeil" e "mon cul" (literalmente, meu cu ou ainda melhor: meu traseiro, minha bunda), sempre como expressão de incredulidade, de dúvida, de desacordo insolente. "Mon cul" e "mon oeil" são, nesse caso preciso, sinônimos, um ainda mais vulgar do que o outro. No caso de "mon oeil", a expressão acompanha-se, no filme do mesmo nome de Louis Malle, de um gesto que existe, aliás, na cultura brasileira: colocar o indicador na pálpebra inferior de um dos olhos para indicar a dúvida. Diz-se ou dizia-se então: "este aqui é irmão desse". De qualquer jeito, cul ou oeil correspondem a dois orifícios por onde se desconfia da verdade, da mentira que quer passar por verdade. Sente-se que, a partir desse contexto cultural, em oeillarde, há sugestão forte de erotismo e de contestação. O outro caminho para explicar a palavra oeillarde seria um jogo de palavras, já anteriormente sugerido, com uma língua estrangeira, no caso o inglês. Freud, no seu livro Le mot d’esprit et ses rapports avec l’inconscient, [66] analisa o procedimento e dá vários exemplos. Assim, oeillarde seria a conjunção de oeillade+hard. O leitor reencontra o estilo "canaille" , popular na zona da Bastilha em Paris, nas vizinhanças da rua de Lappe. A tradução poderia ser feita de duas maneiras diferentes: uma, mais vulgar e brutal, explícita: oeillardes = traseiros ou bundas que se oferecem a passantes indiferentes; outra, menos contundente, implícita: oeillardes = olhares insistentes, olhares que buscam clientes. A primeira solução soa meio pornográfica, uma vez que o limite da inconveniência em português é diferente, no caso, do limite em francês. Preferiu-se a segunda solução uma vez que o poema parece já suficientemente "canaille" com a leitura da expressão "en ambulance" como "que deambulam", sugerindo o ir e vir das prostitutas numa avenida à procura de clientes: do lat. ambulare, passear. As luvas brancas indiferentes, por metonímia, sugerem, ao mesmo tempo, burgueses e/ou policiais, ambos figuras ou agentes da ordem. Uns procuram sexo fácil numa zona de prostituição, outros reprimem manifestações de grevistas ou desempregados. O vadio no final do poema comenta irônico a primeira relação barulhenta e sôfrega de uma recém casada e o objeto inanimado que marca o tempo (o relógio) – símbolo tão importante na poesia ocidental desde o Barroco até Baudelaire – parece escandalizar-se com o atraso já de três horas da mulher amada. A intertextualidade do poema que parecia um simples amontoado de frases e imagens desconexas, quase uma colagem, ganha em coerência e ironia, em distanciamento e crítica. Creio que esse rápido exemplo dá a medida da dificuldade em traduzir e as armadilhas da poética de Damas sob a aparente simplicidade. Traduzir textos literários supõe quase sempre uma negociação nunca explicitada em que o tradutor tem diante de si duas opções: facilitar a leitura ou manter a opacidade, quando ela existe, do original. De forma evidente também ele deve preparar-se para perdas de conotações nessa translação entre duas línguas o que poderá buscar compensar, num jogo secreto de equilíbrio só possível de ser percebido numa edição bilingue como esta, explorando a riqueza da língua para a qual ele traduz. Esse jogo do equilíbrio em que ora se retira / atenua, ora se acrescenta conotação é perceptível no texto de "Enquanto te espero". Assim, em outro poema, criou-se deliberadamente uma variação, ausente do original, para introduzir uma distinção que a língua portuguesa permite, mas não a francesa. Como se sabe, o sintagma muito simples il est malade pode ser traduzido por "ele está doente" (estado temporário de febre, de mal-estar passageiro) ou por "ele é doente" (estado permanente, de doença crônica ou de doente imaginário obsessivo). No poema em que o poeta se diz ridículo ("Saldo/ Soldo"), joga-se com essa dualidade na expressão do tempo e estabelece-se uma gradação, inexistente no original em francês, entre estar e ser ridículo, do exterior para o interior, indo do que lhe cobre o corpo para o desejo secreto de embranquecimento. O poeta está inicialmente ridículo em roupas que não lhe convêm, descobrindo progressivamente depois que é ridículo enquanto assimilado, visto pelo olhar do Outro. Enfim, quase todos os jogos de desconstrução de palavras encontraram correspondências em português: num único caso, no muito conhecido poema "Soluço", para traduzir gui/tare optou-se por uma solução gráfica gui/ta(r)ra uma vez que tara em português não soa com duplo rr. Outro problema interessante: o ritmo e a repetição. A repetição em Damas não é sempre a da ladainha, repetição quase de imobilidade e encantamento amorosos, que acrescenta novos louvores e invocações ao que se ama. Algumas vezes o é, e nesse caso a sua poética lembra, como o negativo de uma foto, a repetição de um outro poeta (religioso e católico), apreciado inclusive pelo jovem Césaire, Charles Péguy nas suas Tapisseries. [67] A ladainha em Damas é ainda a transposição mecânica e irônica do código de comportamento da burguesia mulata de Caiena que se quer mais autenticamente "gaulesa" do que os franceses de França: nesse caso lembra mais o lenga-lenga insuportável da lavagem de cérebro. Em outros casos, enfim, a sua repetição lembra um ritmo circular, de valsa que ao girar volta sempre ao ponto de partida: é o caso da poema sobre uma torneira a pingar, metáfora de uma enxaqueca lancinante (que um leitor brasileiro relaciona quase imediatamente com o poema "Num monumento à aspirina" de João Cabral de Melo Neto) ou a ronda irônica dos alemães e dos franceses querendo ambos a pele do outro para fazer um tapete. Damas apresenta ainda algo de muito estimulante para os nossos tempos de inconformismo conformista, melhor: de inconformismo aparente e teatral, de cartas marcadas, consciente dos limites impostos pelas regras do "bem pensar" ou do "bem sentir". Damas não é nunca, mas nunca mesmo, politicamente correto. A escolha da epígrafe inicial de Claude Mac Kay o sugere: que ninguém espere de mim o que se convencionou dever ser esperado de um negro (nem de um mulato, acrescentamos nós); não sou filho da África. Com Damas, acabam-se as máscaras e as poses, as ilusões e a retórica grandiloquente. Isso explica por um lado, a adesão até certo ponto superficial de certos leitores à sua poética e por outro lado, a importância capital que lhe atribui Frantz Fanon em particular no seu livro Peau noire, masques blancs (1952). [68] Fanon percebeu que a força de Damas é a força da desmistificação e da dessacralização. Damas ousa dizer o seu ódio e o seu ressentimento raciais e ao dizê-los ultrapassa o simples ruminar do ódio e do ressentimento. Ousa atacar ex-combatentes negros senegaleses, os famosos "Tirailleurs sénégalais" (os batalhões coloniais das tropas francesas que combateram não só na I como na II Guerra Mundial e que, entre as duas conflagrações, foram enviados para conter a agitação política no Império colonial francês, inclusive nas Antilhas). Damas, pela ironia devastadora, quebra a identificação do militante, afasta a mesmice das ideologias e impede o tolo orgulho nacionalista. Damas é, enfim, no trio da negritude, o grande lírico, que exprime ao mesmo tempo as dores e as dificuldades do amor assim como o erotismo, no jogo ambíguo de imagens da memória, do momento presente e da imaginação. Assim, uma mulher desconhecida entrevista na rua funde-se, de forma imprevista, com a mulher amada e ausente, no poema "Captação". Uma última nota sobre o que não foi traduzido. O título de um poema dedicado a Louis Armstrong e algumas palavras não foram traduzidas: camembert ("É certo"), savoir-vivre (título de um poema), pernod fils ("Num cartão postal" ), plastron e melon ("Saldo/Soldo") ou o pejorativo Boches ("Et caetera"). Manteve-se também o estranhamento do original no caso do inglês shine. [69] No caso do francês, as palavras citadas são bastante conhecidas como tipo de queijo de pasta mole da Normandia (camembert) ou aperitivo forte, tradicionalmente de absinto [70] (pernod fils), ou fazem parte do contexto de francofilia cultural da época, inclusive no vestir. Chamar os soldados alemães de Boches é algo que ficou da I Guerra Mundial e que se pode, inclusive, encontrar no jornalismo de língua portuguesa da época e o termo por vezes volta, ainda hoje, em alguns críticos (que deveriam ler Damas) da atual política alemã na União Europeia. No poema "Fichas para a roleta", manteve-se a oposição entre Creusot e Schneiders facilmente apreendida como fábricas francesas de produção bélica e empresários alemães da indústria para a guerra. No caso francês, usa-se o topónimo (Creusot, grande centro metalúrgico perto de Paris, que rima aliás com Maginot) e no caso alemão, o nome de uma família que se espalhou por toda Europa, ganha conotação de grande burguesia industrial. Enfim, num caso, o do poema "Lembrete", acreditou-se que o sintagma bastante neutro, quase sem conotação especial "des airs d’esclaves" (= cantos de escravos) ganharia força como "velhos lundus", exemplo de adaptação a um outro contexto cultural mestiço das Américas negras, onde esse tipo de canto dos morros perdurou, entre nós, na bela voz grave de Clementina de Jesus. O poema, na versão em português, tornou-se mais sintético sem a pesada repetição da locução "pendant que". A negociação implícita, no caso, optou pela contenção elíptica. Nesse mesmo poema, a palavra "flûte" repetida (veja-se: "et flûte/ flûte ") constitui um nó intrincado de significações que desafia toda e qualquer tradução. Quando aparece pela primeira vez é uma interjeição (embora o original não apresente o sinal gráfico correspondente): trata-se, uma vez mais, de uma expressão familiar, bastante usada, que marca a impaciência e a decepção do narrador que recorda o passado, primeiro como indivíduo, depois como membro de uma coletividade de descendentes de escravos. Infelizmente, como sabe qualquer brasileiro, a palavra flauta em português não é usada como interjeição e o jogo entre a primeira e a segunda flauta (esta de caniço) ressoando nos morros perdeu-se irremediavelmente na passagem do francês para o português. Não foi encontrada uma solução satisfatória. [71] Que chato para a primeira ocorrência (embora seja esse o sentido) seria banal demais e quebraria o lirismo do canto que vem dos morros, certamente em crioulo. Traduzir poesia implica também uma certa frustração. Ainda nesse mesmo poema, o leitor atento observará a sutileza oculta da expressão "brimades de bambou" que transforma a expressão familiar corrente "coup de bambou": esta significa propriamente cansaço extremo e repentino. (J’ai eu un coup de bambou = de repente senti muito cansaço). A expressão no poema é, e não é, aquela esperada pelo leitor que tem o francês como sua língua. A estrofe torna-se ambígua e polissêmica: cansaço do menino que estudou à força a História de França e castigo físico do menino por não aprender a mesma História. A simplicidade de Damas esconde inúmeras e imprevistas armadilhas assim como jogos discretos que podem passar desapercebidos. Há ainda diferenças radicais, não evidentes, entre França e Brasil do ponto de vista do viver quotidiano: a concierge, figura emblemática e feminina em todo o espaço francês, não corresponde ao porteiro, sempre homem no Brasil. Alguém já viu uma porteira no Rio ou em S. Paulo? embora ela exista frequentemente em Lisboa e nas grandes cidades de Portugal. A porteira entre nós brasileiros constitui uma atividade improvável: ela aparece no poema "Nevralgia" mas soa, para nós, algo exótica. Traduzir por zeladora traria alguma vantagem? Não me parece. Aliás, a discussão sobre a "tradusibilidade" é muito antiga e muito atual. Derrida comenta sobre a impossibilidade de traduzir em particular os nomes próprios a partir de um trecho bíblico claramente ambíguo sobre a torre de Babel: Assim Deus, na sua rivalidade com a tribo dos Shems, dá-lhes, de uma certa maneira, a ordem absolutamente dupla: […] traduzam-me e […] não me traduzam, desejo que me traduzam, que traduzam o nome que lhes imponho e, ao mesmo tempo, sobretudo, não o traduzam, não o devem traduzir. Eu diria que todo nome próprio é trabalhado por esse desejo: traduza-me, não me traduza. [72] Um outro título problemático dentro de Pigmentos brinca com uma terceira língua, esta ainda mais oculta, o crioulo: "limbé" em crioulo da Guiana significa "sofrimento ou dor de amor". Como traduzi-lo para o português sem perda significativa de conotação? Traduzir por tristonho, entristecido, doído, dolorido, cheio de dor, saudoso? Depois de alguma hesitação, escolheu-se "No limbo" por causa da semelhança fônica, o termo limbo (do lat. Limbus: orla, margem, franja) carregando as conotações de afastamento, de lugar marginal, de privação da visão de Deus. No caso substituiu-se a conotação de tipo sentimental por outra de cunho escatológico. O poema em questão exprimiria a carência profunda da África? Ou seria simplesmente uma postura ideológica? Creio que a ausência de uma identidade puramente africana marcou fundo Damas. Até os simples títulos dos poemas ocultam outras pequenas armadilhas. Já aludimos rapidamente a um ou a outro título. "Trégua", por exemplo, reúne em francês duas ideias diferentes: o substantivo trêve é a cessação temporária de hostilidades (trégua portanto, exatamente como em português) mas trêve de significa "deixemos disso, chega, acabou". A negociação inerente à tradução não pode manter, infelizmente, uma só única palavra na versão em português para as duas acepções. O que dizer então do título do poema de Damas dedicado a Césaire? "Solde" em francês é ao mesmo tempo "saldo" ou seja, o que restou no inventário final, mas também "soldo, paga, salário", o que poderia igualmente ser a opção uma vez que, de forma pejorativa, "être à la solde de quelqu’un" significa ser pago para defender os interesses de outrem. No fim desse poema, o narrador se descobre e se acusa "cúmplice e "rufião". Recusando uma opção única, empobrecedora, decidimos reduplicar o título por nossa conta: "Saldo/ Soldo", uma vez que as duas palavras cabem perfeitamente como título. Ler Damas é explorar os jogos de palavras da oralidade, sob a banalidade ou simplicidade, só aparentes. [73] Uma derradeira palavra sobre as dedicatórias e os contextos evocados. os poemas de Pigmentos cobrem e sugerem contextos e espaços diferentes: o Deep South americano; as plantações das Américas negras (a expressão é de Roger Bastide); o Paris "des folles années 30"; a Guiana dividida entre mulatos e negros; a tentação da assimilação e do embranquecimento na Guiana, na França e em África; a África sonhada e perdida; a memória trágica do trajeto dos barcos tumbeiros [74] através do oceano, na noite escura dos porões fechados etc. As dedicatórias (treze ao todo) traçam a rede das relações de Damas com o meio intelectual em que viveu: a) o poema "Eles vieram aquela noite" dedicado ao senegalês Léopold Sedar Senghor, o "Africano" do trio da negritude, evoca a cena que viria a fundar América das Plantações: o rapto brutal de negros que dançam, distraídos, numa aldeia para serem levados ao negreiro e à escravidão do outro lado do oceano: b) o poema "Há noites" a Alejo Carpentier (1904-1980), o grande intelectual cubano, filho de um arquiteto francês instalado em Cuba, autor de El reino de este mundo (1949) sobre a revolução haitiana; c) o poema "O vento" ao casal Henriette e Jean-Louis Baghio’o, ele nascido na Martinica (1910- 1994), outro conhecido exemplar da burguesia mulata das Antilhas francesas; [75] d) o poema "Soluço", um dos mais conhecidos de Pigmentos, dedicado ao casal Vashti e Mercer Cook, ele professor negro-americano (1903-1987), autor de inúmeros ensaios, diplomata do seu país em África (Gâmbia, Senegal e Nigéria); e) o poema "Saldo/Soldo" dedicado a Aimé Césaire (1913-2008), o antigo condiscípulo do Liceu Schoelcher de Fort-de-France, o amigo reencontrado em Paris, o criador da palavra "negritude"; [76] f) o poema "No limbo" dedicado a Robert Romain, amigo do autor, também da Guiana; g) o poema "O lamento do negro" dedicado a Robert Goffin (1898-1984), advogado e poeta belga, militante "wallon" (ou seja da Bélgica francófona), autor do primeiro livro importante em francês sobre o jazz: JazzBand, com prefácio de Jules Romains (Bruxelles, Écrits du Nord, 1922): é Goffin que assina o prefácio da edição dita definitiva de Pigmentos em 1962 por Présence Africaine; h) o poema "Noite em claro", dedicado ao casal Sônia e Gorges Gavarry ( - 1987), criadores de um clube em Paris onde a cada semana eram debatidos assuntos de atualidade; i) o poema "Embranquecido" dedicado ao casal senegalês Christiane (1925 -) e Alioune Diop (1910-1980), ele criador da revista e da casa de edição Présence Africaine; ela, sua continuadora, depois da morte do marido; j) o poema "Lembrança" dedicado a Richard Danglemont, também da Guiana; k) o poema "Shine" dedicado a Louis Armstrong (Nova Orleans, 1901-Nova Iorque, 1971), o grande cantor, compositor, trompetista nascido no Deep South dos Estados Unidos; l) o poema "Savoir-vivre" dedicado a Etienne Zabulon, técnico de Minas que deixa o posto em 1960, segundo um decreto publicado no Diário Oficial, de funcionário em Caiena; m) o poema "Olhar" dedicado a Jacques Howlett (1919-1982) professor de filosofia, membro da equipe de Présence Africaine, autor Un temps pour rien (1953) e Le Théâtre des opérations (1959): é Howlett que assina a quarta capa das edições de Pigments de 1962 e 1972. Em resumo, a obra de Damas, precursora e inovadora sob tantos aspectos, discreta e decididamente moderna, lírica e crítica, esconde a sua novidade sob a aparente simplicidade da reescritura da oralidade quotidiana, de uma musicalidade evidente. É no momento em que se busca traduzi-la para uma outra língua, até mesmo aparentada ao francês do original, como o português, que ela revela as suas inumeráveis dobras e os seus jogos por vezes irredutíveis ou incontornáveis, ou seja, as suas sutilezas. Sem o lirismo majestoso de Senghor, sem as imagens inéditas que jorram sem cessar de Césaire, ela representa a terceira voz da negritude no seu lirismo e na sua ironia, tanto do ponto de vista individual como coletivo. Damas é sem dúvida nenhuma o mais decididamente americano dos três e por isso mesmo deveria interessar ao público leitor brasileiro. NOTAS 1. Parte desta apresentação crítica sobre a poesia de Damas foi discutida com a especialista italiana Antonella Emina, em particular os itens 2, 3 e 4. 2. A primeira versão do Cahier d’un retour au pays natal sai na revista Volontés, pouco antes do início da guerra. 3. Faz-se alusão ao volume La terre le feu l’eau et les vents. Une anthologie de la poésie du Tout-Monde. Paris, Galaade, 2010. 4. Ocupa, assim, a posição equivalente à de Manuel Bandeira, no Modernismo brasileiro. 5. Guyane, Léon-Gontran Damas, 1995, 23 min. O filme recebeu vários prêmios (Milão, 1995; Québec, 1996; Cairo, 1996). 6. Poeta, romancista e ensaísta nascido na Guadalupe em abril de 1947. Como ensaísta publicou, em particular; Les fruits du cyclone: une géopolitique de la Caraïbe. Seuil, 2006 e Aimé Césaire, frère volcan. Seuil, 2013. 7. Pigments. Paris, Guy Lévis-Mano, 1937. Lembrar que, em 1937, a Guerra civil de Espanha já começou. 8. O prefácio agressivo e decididamente político de Robert Desnos explica, de certa maneira, a decisão de censurar as duas primeiras obras de Damas, em verso e em prosa, Pigments e Retour de Guyane. O volume de poemas foi censurado pelo governo francês e o ensaio, pela administração colonial da Guiana. 9. Pigments, Paris, Présence Africaine, 1962, p. 7-8. O mesmo prefácio aparece na edição de Pigments de 1972. 10. Trata-se de Gabriel de la Concepción Valdés ou "Plácido" (1809-1844), poeta cubano de grande aceitação popular na primeira metade do século XIX. Segundo Lezama Lima, "fué la alegria de la casa, de la fiesta, de la guitarra y de la noche melancólica". Jose• Lezama Lima. "Gabriel de la Concepcio•n Valde•s (Pla•cido)", in Antologi•a de la poesi•a cubana. Tomo II. Siglo XIX. La Habana, Consejo Nacional de Cultura, 1965, pp. 276279. A citação está nas páginas 277-278. 11. As "Désirades", ou seja, as ilhas do desejo, correspondem às ilhas maravilhosas, já presentes no final do Cahier d’un retour au pays natal, de Césaire e retomam um tema que vem da Antiguidade, desde os Gregos. 12. Les armes miraculeuses é o título de um volume de poemas de Césaire. Gallimard, 1946. 13. Título de um volume de poemas de Damas durante muito tempo inédito. Titulo estranho aliás que vem de Desnos, significando "figuras, imagens, aparências de pouco valor": a forma transforma a expressão corrente mine de rien, que significa "sem parecer". Anuncia tema importante em Black-Label: NOUS LES GUEUXNÓS OS ESFARRAPADOS nous les peunós os pouco nous les riennós os nada nous les chiensnós os cachorros nous les maigresnós os magros nous les Nègresnós os Negros Note-se que o plural é muito pertinente com o estilo do inédito de Damas. 14. A primeira antologia de Damas (Seuil, 1947) precede a de Senghor (1948) e a sua segunda (Présence Africaine, 1966) reúne, décadas antes da Anthologie du Tout Monde, elaborada sob a inspiração de Édouard Glissant, poetas produzindo em línguas diferentes. 15. Ver a análise dos "poemas-túmulo" de Césaire in ALMEIDA, Lilian Pestre de, Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit, Würzburg, Königshausen & Neumann, 2010, 434 p. ou ainda "Les hommages croisés aux frères de la négritude: Damas, Césaire, Senghor et Fanon", in Léon-Gontran Damas, poète moderne. Direction Biringanine Ndagano et G. Chiharhalwirna (Direction). Ibis, Rouge, 2009. 16. É claro ainda que o tema do fogo liga-se, nos poetas e prosadores oriundos da Martinica (como Césaire, Glissant ou Chamoiseau) e da Guadalupe (como Daniel Maximin, Guy Tirolien, Simone Schartz-Bart ou ainda Maryse Condé), ao tema do vulcão, presença física marcante nas duas ilhas francesas, graças à Montagne Pelée e à La Soufrière. Os dois vulcões são ainda ativos. A erupção de 8 de maio de 1902 da Montagne Pelée matou 26 mil pessoas, queimou dezenas de barcos no porto e destruiu a cidade de Saint-Pierre, antiga capital econômica da ilha, a noroeste da Martinica. A tragédia ainda está bem presente no imaginário coletivo. 17. Corresponde, de certa forma, ao libanês (melhor: ao "turco") dos romances de Jorge Amado. 18. O vulcão é uma presença constante na poesia de Césaire e de Maximin: a Montagne Pelée e a Soufrière, respectivamente na Martinica e na Guadalupe, marcam a paisagem. Assim se explica o título do último ensaio de Maximin: Césaire, mon frère volcan. Seuil, 2013. 19. O texto do poema escolhido como epitáfio de Damas é o seguinte: La torche de résine | A tocha de resina portée à bras d’homm | elevada por braço de homem ouvrant la marche | abrindo a marcha dans la nuit du marronnage | na noite dos quilombos n’a jamais cessé | nunca cessou à dire | para dizer vraia | verdade d’être | de ser ce flambeau | essa chama transmis d’âge en âge | transmitida ao longo do tempo et que chacun | e que cada um se fit fort de rallumer | esforçou-se por reacender en souvenir de tant et tant de souvenirs. | em lembrança de tantas e tantas lembranças. 20. Léon-Gontran Damas, Notre génération (inédito), citado in Lilyan kesteloot, Histoire de la Littérature Négro Africaine, Paris, Karthala – AUF, 2001, p. 95 ; e in "Le Groupe de l’Étudiant noir", capítulo Les écrivains noirs de langue française: naissance d’une littérature, Bruxelles, éditions de l’Institut de sociologie, Université libre de Bruxelles, 1963, p. 91. 21. "Le long cri d’Aimé Césaire", Le Nouvel Observateur, n°1528, 17 - 23 février 1994, p. 80-83 (Propos recueillis par Gilles Anquetil, sobre La Poésie , de Aimé Césaire, edição realizada por Daniel Maximin e Gilles Carpentier, Seuil, 546 pages.) 22. "Limbé ", l’Étudiant noir, 3 (mars 1935), p. 6. A estrutura da estrofe sofre diversas revisões pelo autor, até a definitiva em que se dá a cada grupo nominal a dignidade de verso, tendo como resultado atrair a atenção do leitor sobre cada detalhe. 23. Essa estrofe da versão inicial do poema "Limbé" ("No limbo") deveria ser comparada com a versão definitiva. O trabalho de Damas é praticamente quase todo sobre o ritmo. 24. "Négrerie: jeunesse noire et assimilation", l’Étudiant noir, 1 (mars 1935). Na realidade, a palavra "négritude" aparece impressa, pela primeira vez, no poema Cahier d’un retour au pays natal, de Césaire, desde a sua primeira versão (Volontés, 1939). 25. Léopold Sédar Senghor Liberté III. Négritude et civilisation de l’universel, Paris, Seuil, 1977, p. 269-270. 26. Léopold Sédar Senghor, Introduction à Liberté 1. Négritude et Humanisme, p. 9. 27. Léopold Sédar Senghor "Comme les lamentins vont boire à la source", in Poésie complète, édition critique, coordenação de Pierre Brunel, Paris, CNRS éditions, 2007, p. 275 (Planète libre, 1). 28. Cf. Romuald Fonkoua, "Aimé Césaire", in Cahiers d’études africaines [Em linha], 191 (2008), posto em linha em 29 setembro de 2008, consultado em 27 dezembro de 2012. URL: http://etudesafricaines.revues.org/11722 29. Consultar a edição bilingue do poema fundador de Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal/ Diário de um retorno ao país natal, publicada pela EDUSP, 2012. 30. Ver ALMEIDA, Lilian Pestre de. "Damas et les nouvelles littératures des Amériques: entre l’oral et l’écrit" in EMINA, Antonella (sous la direction de). Léon-Gontran Damas. Cent ans en noir et blanc. CNRS Éditions, 2014, p. 177 – 214. 31. Valentin Y. Mundibe é um filósofo, escritor e poeta africano, nascido a 8 de dezembro de 1941 em Jadotville (Likasi), antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo (RDC). Também designado Zaire ou ainda Congo -Kinshasa para distinguir do Congo-Brazzaville (antigo Congo francês). 32. A entrevista de Léon Gontran Damas realizada por V.Y. Mudimbe teve lugar em Howard University (Washington D.C.) nos dias 1 e 2 de outubro de 1973. O texto foi publicado pela primeira vez in Carnets d'Amérique de V.Y. Mudimbe em 1976 (Paris: Saint-Germain-des-Prés / Kinshasa: Centre des Recherches Pédagogiques du R.P. Détienne) e na revista Poésie 43-44-45 (janvier-juin 1976, p. 47-58), com o titulo "Faut-il liquider les pères ?" 33. Diz-se em francês tapuscrit um documento datilografado com correções feitas à mão. 34. As duas obras inaugurais da poesia da negritude, Pigments e o Cahier, são elaboradas no mesmo período. Senghor refere um período de "parturição" do poema de Césaire de três anos, o que nos leva ao ano de 1936. 35. Damas não abandona o título Névralgies que reaparece em volume posterior de poemas. Présence Africaine, 1966. 36. Agradecemos à grande especialista ttaliana, Antonella Emina, a precisão dessa análise dos manuscritos. 37. Essa colônia tem ainda o impacto, extremamente negativo na longa duração, de lugar para condenados a trabalhos forçados de todo o império francês. 38. O poeta faz muitas vezes um jogo de palavras com o nome da sua família (Damas) e a cidade do Oriente a caminho da qual Paulo de Tarso tem a revelação da sua missão, Damasco (Damas, em francês). O jogo de palavras entre o patronímico e o topônimo se perde em português evidentemente. 39. Talvez a única exceção seja o emprego de "Limbé" com o sentido de tristonho, acabrunhado, melancólico, como título de um dos poemas. Consultar a respeito as notas sobre a tradução. 40. "Littérature de hamac": a expressão aparece em Suzanne e Aimé Césaire na revista Tropiques que o casal, mais o amigo Georges Ménil, fundam na Martinica em 1939 e que permanece, ainda hoje, um documento fundamental para o conhecimento da negritude antilhana. 41. O fenômeno dos quilombos foi importante tanto na Guiana francesa como na Guiana holandesa, hoje Suriname: os escravos que conseguem fugir à escravidão adaptam-se à vida dos indígenas. Ainda hoje, sobretudo perto do rio Maroni, vêem-se comunidades negras ribeirinhas que vivem como indígenas (tipos de malocas, uso de redes etc.), exemplo particularmente interessante de mestiçagem cultural. 42. Léon Gontran Damas, Retour de Guyane, Paris, Corti, 1938, p. 202. 43. A principal praça de Caiena, toda plantada de grandes palmeiras imperiais, se denomina Place des Palmistes. 44. Um dos temas mais constantes de Retour de Guyane é o da riqueza, inexplorada, do território guianense. 45. O livro de Fanon foi traduzido para o português: ver Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador, EDUFBA, 2008. 46. No momento da chamada "departamentalização" ("départementalisation") das antigas colônias francesas na América e no oceano Índico, os três poetas fundadores da Negritude – Césaire, Damas e Senghor – são deputados na Assembleia Nacional, em Paris. A questão é muito vasta e escapa ao nosso propósito aqui. Consultar a biografia de Damas e a bibliografia. A carreira política de Césaire (deputado e "maire" de Fort de France, fundador de um partido político, o PPM, Partido Progressista Martinicano, depois da sua ruptura, em 1956, com o PCF de Maurice Thorez) e a de Senghor (inicialmente deputado no parlamento francês e a seguir presidente eleito do seu Senegal, após a Independência do país) são muito mais longas e complexas do que a de Damas. Cesaire e Senghor tem influência política, real e duradoura; Damas teve uma curta experiência política e parlamentar de uns poucos anos. 47. Citado in Christiane Chaulet-Achour, "Sous le signe du colibri. Traces et transferts autobiographiques dans la trilogie de Daniel Maximin". Postcolonialisme et Autobiographie. Albert Memmi, Assia Djebar, Daniel Maximin. Hornung & Ruhe, éds. NY/Amsterdam: Rodopi, 1998, p. 214-215. O tema do amor, já presente em alguns poemas de Pigments, ganhará maior desenvolvimento nos volumes posteriores Névralgies e Black-Label. 48. As traduções de Marietta Damas circularam entre amigos ou foram apresentadas em palestras, não foram objeto de publicação formal, ao que eu saiba pelo menos. 49. ALMEIDA, Lilian Pestre de. "O poeta Léon-Gontran Damas e a negritude", in Exu. Publicação Casa Jorge Amado. Salvador, nº 4, maio-junho 1988, p. 29 - 35. 50. Agulha Revista de Cultura, Fortaleza, janeiro de 2012: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com. br/2014/11/laurine-rousselet-leon-gontran-damas.html. O artigo muito interessante, assinado por Laurina Rousselet, publicado em três línguas diferentes (francês, português e espanhol), apresenta citações de vários livros de Damas e a tradução de trechos dos seus poemas. A revista Agulha possui uma equipe de tradução. Teríamos inúmeros reparos a fazer sobre a tradução dos poemas em português. O problema central, como sempre com Damas, é a tradução da oralidade: "souteneur" em contexto de prostituição deveria ser traduzido por cafetão ou rufião e nunca por defensor; commnandeur não é comandante mas feitor numa plantação de escravos, por exemplo. 51. Os anos 20-40 do século passado são o período áureo inicialmente dos cabarés antilhanos e depois dos bares afro-americanos em Paris: La canne à sucre, o Jockey Club em Montparnasse, Passage de Dantzig, da rue Blomet exclusivo para antilhanos de cor onde cantam e se exibem figuras míticas: a maior de todas, Josephine Becker (Saint Louis, 1906 - Paris, 1975), mas igualmente Moune de Rivel. Outros locais frequentados por Damas: La Cabane cubaine (42, rue Fontaine, em Montmartre, citada e descrita no seu livro de poemas Blacklabel) e ainda os bares do Boulevard Saint Germain, chamados "rhumeries", em particular 166, Boulevard Saint Germain. Essa boemia noturna de Damas dá ao guianense uma imagem bem diferente daquela dos seus dois outros companheiros, Senghor e Césaire, todos os três fundadores da revista l’Étudiant noir. O álcool, o vinho, o rum, todas as bebidas fortes estão presentes na poesia de Damas. 52. O regime de colônia penal (em francês le bagne) só será extinto, muito tardiamente, depois da II Guerra, em junho de 1946. A figura do bagnard (o condenado a trabalhos forçados, vindo da Metrópole mas igualmente de todo o Império francês) marca profundamente a sociedade guianense, tanto no interior como no exterior do pais. Damas, adolescente, no liceu em França, responde ao diretor do colégio dizendo-lhe que se ele, como guianense, fosse filho de "bagnard" teria a mesma cor de pele do outro. O bagnard, mesmo depois de cumprir a sua pena, está proibido de deixar a Guiana. O ensaio de Damas, Retour de Guyane (Paris, José Corti, 1938) descreve longamente o impacto negativo da colônia penal na sociedade guianense. O ensaio será proibido, como Pigments: as duas obras, em prosa e em verso, são praticamente contemporâneas, melhor: seguem-se uma à outra, em 1937 e 1938. 53. Ao longo do rio Maroni, que separa a Guiana francesa do Suriname, vivem os Aluku e os Djuka, descendentes de escravos "marrons" (= quilombolas) que escaparam à colonização holandesa e falam um crioulo diferente. 54. Um único exemplo: um barco afundado no meio rio Maroni, na fronteira com a Guiana holandesa e perto da sua foz, tornou-se uma ilha flutuante com árvores frondosas. 55. Dois vulcões ativos, la Montagne Pelée e La Soufrière, marcam não só a paisagem da Martinica e da Guadalupe como o imaginário dos seus escritores (de Césaire a Glissant; de Maryse Conde ou Daniel Maximin a Simone Schwarz-Bart). A Guiana não tem vulcões, faz parte do continente americano e boa parte do seu território é coberta pela floresta amazônica. Suas costas assemelham-se às costas dos Estados do Amapá e do Pará. 56. Lembro a passagem deliciosa de Machado de Assis, logo na abertura do livro, sobre a frase de uma menina: Vindo agora pela Rua da Glória, dei com sete crianças, meninos e meninas, de vário tamanho, que iam em linha, presas pelas mãos. A idade, o riso e a viveza chamaram-me a atenção, e eu parei na calçada, a fitá-las. Eram tão graciosas todas, e pareciam tão amigas que entrei a rir de gosto. Nisto ficaria a narração, caso chegasse a escrevê-la, se não fosse o dito de uma delas, uma menina, que me viu rir parado, e disse às suas companheiras: - Olha aquele moço que está rindo para nós. Esta palavra me mostrou o que são olhos de crianças. A mim, com estes bigodes brancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente dão este nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão de idade. 57. Uma amiga, a profª Sónia Oliveira Almeida, da UFF, me observa que chamar as professoras de tia sem mais, difunde-se atualmente no ensino primário e secundário por todo o Brasil. Seria quase o equivalente ao velho termo português, menos afetivo e mais respeitoso, "sotora" (= senhora doutora). 58. A etimologia da palavra "canaille" ajuda a compreender o sentido da palavra: do it. canaglia, de cane, cão: 1. indivíduo desonesto, desprezível, canalha. 2. Vx: a ralé. Adj. De honestidade duvidosa; de vulgaridade um pouco estudada. O estilo canaille corresponde ao contexto de vulgaridade meio teatral que fez sucesso em Paris em particular, em dois bairros de grande vida noturna, em torno da praça Pigalle em Montmartre ou nos cabarés de Montparnasse. 59. Léon-Gontran Damas, poète moderne. Essai. Organisé par Ndagano Biringanine et Gervais Chirhalwirwa. Ibis rouge, 2009. 60. Damas é um "anglicista" que viveu, inclusive, durante longos anos nos Estados Unidos como professor universitário. Em comparação, Senghor é muito mais um "latinista". Césaire, igualmente "anglicista" (ver o seu trabalho final na Ecole Normale Supérieure sobre poesia negra americana) é também um excelente latinista. 61. A "java" é a dança mais típica do repertório chamado "musette": de origem popular, apareceu nos anos 30 em Paris graças aos acordeonistas da rua de Lappe. Segundo o Dictionnaire étymologique et historique, e o Trésor de la langue française, a palava java é derivada da ilha de Java. O Dictionnaire culturel en langue française indica: "1922, argot. faire la java (1901) danse en remuant les épaules; d’origine inconnue. Sans rapport avec l’île de Java ou avec une corruption supposée auvergnate de ça va en cha va, java." A palavra espalhou-se no uso popular com o sentido de astúcia, manobra (1935), connaître java = connaître la musique (= saber o que está implícito, conhecer a música). 62. Existe, é claro, um outro jogo oculto, impossível de traduzir em português uma vez que, em francês, o termo irônico de puceaux (= donzelos) , masculino pouco usado de pucelle (= donzela), lembra pourceaux (= porcos). Cf. a expressão jeter des perles aux pourceaux (= jogar pérolas aos porcos) que faz parte do Sermão da Montanha (Mt, VII, 1-6). 63. A Internacional é um canto revolucionário cujas palavras foram escritas em 1871 por Eugène Pottier e a música composta por Pierre Degeyter em 1888. Canta-se, na época e ainda recentemente, a Internacional nas marchas de protesto que saem da Bastilha em direção à Place de la Republique, trajeto ainda hoje canônico da esquerda francesa. 64. Queneau é co-fundador, em 1960, de "Oulipo" , exploração de obras "potenciais" através de jogos de palavras. 65. Louis Malle fez, no ano seguinte, em 1960, um filme de comédia burlesca intitulado Zazie dans le métro, com Philippe Noiret (o tio) e Catherine Demageot (a menina Zazie). O filme teve pouco sucesso no estrangeiro. No entanto, alguns artistas como Truffaut, Ionesco e próprio Chaplin o elogiaram com entusiasmo. Raymond Queneau declarou: "ao mesmo tempo em que reconheço Zazie dans le métro enquanto livro, vejo no filme uma obra original cujo autor se chama Louis Malle, uma obra insólita e poética a que sou sensível". 66. Preferimos indicar a versão em francês do estudo de Freud porque a tradução foi revista pelo próprio autor. 67. Consultar artigo publicado na revista Tropiques. 68. Para apreciar a "marca" de Damas no texto de Frantz Fanon (1925 – 1961), consultar em particular o capítulo VI e a conclusão de Peau noire masques blancs (o volume foi publicado em português com o título Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Prefácio de Lewia R. Gordon. Salvador, EDUFBA, 2008). Fanon cita explicitamente o poema "Saldo/Soldo" como a "experiência vivida do negro" num artigo publicado inicialmente na revista Esprit em maio de 1951 e que figura no seu livro: o dilaceramento constante entre o aqui e o além (e esses lugares podem trocar de posição), a quase obrigação do "mimetismo" e sobretudo a necessidade de guardar os seus desejos "comprimidos" (Black-label, 1956). 69. Shine poderia ser traduzido em português por lustre, brilho, mas preferiu-se manter o termo inglês que pode ser, aliás, ao mesmo tempo verbo e substantivo, o que implica tratar o leitor de língua portuguesa da mesma forma que o leitor francófono. Cabe ao leitor perceber em que medida shine liga-se ao trompetista/cantor e ao texto propriamente dito. Manteve-se igualmente, no poema "Trégua", a palavra swing, perfeitamente transparente nos dias de hoje. 70. O absinto Pernod Fils foi produzido durante mais de um século em França (1805 - 1914). Depois da proibição legal do absinto (16 de março de 1915), o nome próprio ficou como sinônimo de álcool forte. 71. Note-se que, na linguagem familiar em Portugal, usa-se um outro instrumento musical para marcar a impaciência: "gaita". Entretanto não só a expressão não é corrente no Brasil (embora apareça no Aurélio enquanto "expressão de irritação") como também a junção de "gaita" e "flauta", na linha seguinte, soaria confuso, quase uma cacofonia. Que chato ou mesmo que pena, por demais vago, decididamente não convinham. Preferiu-se então repetir a palavra flauta/flauta embora com perda evidente de conotação. Exemplo de sutileza da poética damasiana: a repetição de uma só palavra com valores e significados diferentes ("et flûte / flûte") faz a transição entre a memória nefasta da indigestão do ensino da História de França e o contexto popular lírico da flauta de bambu que ressoa nos morros de Caiena. 72. L’Oreille de l’autre… Textes et débats avec Jacques Derrida sous la direction de Claude Lévesque et Christie V. Mcdonald, Montréal, VLB, 1982, p. 136-137. 73. Agradeço a Sónia Oliveira Almeida ter discutido comigo os problemas de tradução de Damas. 74. A palavra tumbeiro em português é muito expressiva: em tumbeiro, há tumba, túmulo. Jorge de Lima (18931953) a emprega como sinônimo/metáfora de barco negreiro: cf. o poema "História", in Poemas negros (1947). 75. A irmã de Jean-Louis Baghio’o, Cécile Jean-Louis, nascida em Bordéus, fez carreira como cantora de biguine sob o pseudónimo de Moune de Rivel, sobretudo no cabaret La canne à sucre, clube antilhano de Paris, em Montparnasse, a partir de 1945. Ela é ainda a única mulher presente na foto famosa reunindo os participantes do Primeiro Congresso de artistas e escritores negros, no pátio da Sorbonne. 76. Césaire escreverá sobre Damas um poema em sua homenagem por ocasião da morte do amigo: "LéonGontran Damas, feu toujours sombre…", in moi, laminaire… (Seuil, 1982) ***** LILIAN PESTRE DE ALMEIDA. Doutora por Paris IV, professora de Língua e Literatura francesa da UFRJ e da UFF, vive em Lisboa há 20 anos. Pioneira dos estudos francófonos no Brasil, trabalhou, como docente convidada, em Paris III (França) e Laval (Canadá), e como docente titular, na Universidade Independente (Lisboa). Publica sobre Literaturas francófonas (Antilhas e Québec), Literatura comparada (relações entre artes visuais e literatura, entre Lusofonia e Francofonia), Marranos e cativos no Mediterrâneo. Autora de Aimé Césaire: Une saison en Haïti (2010), Césaire hors frontières. Poétique, intertextualité et littérature comparée (2015). Publicou ainda a tradução bilingue do Cahier d’un retour au pays natal/Diário de um retorno ao país natal (2012). | ANTONELLA EMINA. Diretora do Istituto di Storia dell’Europa Mediterranea (Italia), especialista de literaturas francófonas. Publicou recentemente: Damas. Cent ans en noir et blanc. Dirige RIMe, Rivista dell'Istituto di Storia dell'Europa Mediterranea. em Totirno. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) sábado, 9 de janeiro de 2016 RICARDO ECHÁVARRI | Antonin Artaud, Una nota sobre el peyote En 1936, Antonin Artaud viajó al corazón de la sierra Tarahumara, a conocer “una cultura mágica”, original, no contaminada por Europa. No fue el primer europeo que viajó al país rarámuri. Cincuenta años antes, el etnólogo noruego Carl Lumholtz (autor de México desconocido, el primer libro sobre los indios del norte) llegó a lomo de mula a Nararachic, el lugar donde danza la muerte, con una carta de Porfirio Díaz, que le servía de salvoconducto. Lumholtz dio la primera noticia a Occidente de la existencia de una “raza que vivía aún como en la Edad de Piedra”; se adelantó también a Artaud en probar el peyote y describir los efectos psicotrópicos de la mezcalina pura. “La planta, cuando se toma, calma toda sensación de hambre o sed. También produce alucinaciones. Tomé sólo una pequeña jícara, pero sentí los efectos en pocos minutos. Primero me hizo despertar y actuó como un estimulante, similar al café, pero mucho más fuerte. El híkuli es también un poderoso protector de su pueblo y en cualquier circunstancia le trae suerte”. Antonin Artaud, el poeta surrealista autor de El teatro y su doble, viajará en tren desde la ciudad México hacia el norte, para adentrarse en el país de los Tarahumaras. Ese viaje es definitivo en su vida y su creación (escribe De un viaje al país de los Tarahumaras y media docena de artículos más, casi todos durante sus periodos de lucidez, en el asilo de Rodez donde, acusado de locura, fue recluido). El viaje de Antonin Artaud al corazón de la Sierra Madre es doble: es un viaje hacia un país desconocido para encontrar lo nuevo y, a su vez, un viaje interior que le permite buscarse a sí mismo. En ese viaje prueba el peyote y descubre en el camino del Ciguli el sentido secreto de esa raza original. Artaud venía asqueado de Europa, que comenzaba un nuevo ciclo de guerras por el dominio neocolonial. La utopía revolucionaria se detenía en el “terror” a los disidentes. La poesía vivía una “disgregación” de los ismos y los lenguajes de vanguardia se convertían poco a poco en fórmulas retóricas. El viaje de Artaud es un viaje a la “otredad”, a la búsqueda de caminos alternativos que le dieran sentido a la condición humana. Occidente ha pretendido arrogarse siempre el único camino —el del mítico progreso— para lograr la armonía de los hombres. El resultado es que el hombre se ha cosificado, se ha convertido en cosa en un mundo instrumental de cosas. El hombre cosificado es llamado por el raramuri“ el hombre que se ha extraviado”. Ir al país de los tarahumaras le descubre a Artaud un mundo nuevo. Él escucha que los raramuris “cayeron del cielo a la Sierra, en una Naturaleza ya preparada” y que esa tribu conservaba el sentido de lo sagrado que lo unía a los demás hombres y a la naturaleza. “La palabra Dios no existe en su lengua; pero rinden culto a un principio trascendente de la Naturaleza, que es Macho y Hembra como debe ser”. Los tarahumaras le parecen “una Raza principio”, que vive más en un tiempo propio, natural y cósmico. Lo asombra que la sierra sea una Agulha Revista de Cultura “montaña de signos” y que el simbolismo del mundo indígena hable de un lenguaje cifrado que alude a la armonía del hombre y el cosmos. Es testigo, una noche, de una danza donde sacrifican un toro (El rito de los reyes de la Atlántida), idéntica a la que Platón describe en Critias, su diálogo sobre la Atlántida. Descubre que hay la creencia del “paso por las tribus tarahumaras de una raza de hombres portadores del fuego, que tenían tres Señores y tres Reyes, y caminaban hacia la Estrella polar”, que asimila a la leyenda bíblica de los reyes de Oriente (El país de los Reyes Magos). Le llama la atención la cuenta del tiempo a partir del ciclo lunar y el superior “culto astronómico del sol”. Simbólico es todo el lenguaje del mundo indígena: sus cuerpos pintados, sus vestidos, sus colores, sus adornos, sus bailes, todo habla de un código sagrado y secreto en armonía con el ritmo cósmico. Esos mismos misteriosos signos los había visto en las pirámides de México. Artaud sabe que Occidente es incapaz de traducir este lenguaje, pues ha perdido las claves de su interpretación. Para el poeta francés el ritual del peyote es un culto solar que le permite al individuo recuperar la percepción de lo infinito: despertar “el sentido de lo sagrado de una forma que la conciencia europea ya no conoce”. Gracias al camino del cíguli “el Tarahumara toma conciencia de la dualidad” y descubre “lo que es de él y lo que es del Otro” y, en esa interacción, aprende a “crearse a sí mismo”. El hombre es “transportado al otro lado de las cosas”, o “restituido a lo que existe en el otro lado”. El peyote es hermafrodita y “en el interior de la raza Tarahumara el Macho y la Hembra existen simultáneamente”. El cíguli finalmente constituye “el misterio mismo de la poesía”. Esos indios mexicanos que viven en la Sierra Madre “en un estado como antes del diluvio” han resistido “desde hace cuatrocientos años a todo lo que ha venido a atacarlos: la civilización, el mestizaje, la guerra, el invierno”. “El gobierno de México hace lo imposible por quitar el peyote a los Tarahumaras”. Artaud ve en la resistencia indígena, en la perduración de su cultura, de su religión, de su lenguaje, la elaboración de una otredad humana, más en armonía con los demás, con la naturaleza y el cosmos. En armonía también con lo sagrado (entendido no como ritos externos u ortodoxias providenciales) que está anclado a los orígenes. En la visión que Antonin Artaud tiene de los tarahumaras hay mucho del ethos moderno: la búsqueda de un mundo natural, casi (post)rousseauniano, que alivie al hombre de la náusea civilizatoria. De ahí el autoexilio, la huida a un mundo más cercano a la naturaleza de muchos modernos. La náusea europea hace que Gauguin huya a Tahití, que Morisot vaya a Venezuela a buscar las fuentes del Orinoco, que Breton vea en México “el país surrealista por excelencia”, que Anne Eisner abandone su cómoda vida en Nueva York y se adentre en el Congo y pinte —entre selvas y pigmeos del Mbuti—, abstractas naturalezas, que Artaud viaje al país del peyote para encontrar un nuevo sagrado. poeta moderno, imitó a Baudelaire hasta en el consumo de haschis. El poeta peruano Abraham Valdelomar cuenta que en el Barrio Chino de Lima él y José Vasconcelos visitaron los fumaderos de opio. Artaud, quien venía de esa tradición moderna, descubre una cosa nueva además, que en México las plantas sagradas desde siempre (Westheim, en su Arte prehispánico de México, comprobó en códices y esculturas precolombinas la presencia de las plantas de los dioses) habían sido un mediador entre lo humano y lo sagrado. Varias intuiciones del poeta francés superan ese utopismo moderno; de manera muy profunda pone a los tarahumaras y sus ideas del mundo en la otredad de los caminos del hombre y su contorno. Su condena a Occidente es letal: el hombre cosificado ha perdido el sentido de lo sagrado: “un blanco es alguien a quienes los dioses han abandonado”. La civilización con su mito de “progreso” ha poblado el mundo de artefactos, pero se ha olvidado del hombre; en sus formas más oscuras ha devenido en una modalidad, quizás la peor, de salvajismo: amenaza la tierra, las aguas, los cielos, la flora, la fauna, a la humanidad misma. Los tarahumaras van a la ciudad para ver “cómo son los hombres que se han equivocado”. Cuando, cansados de sus largas caminatas, con sed o hambre, solicitan a los mexicanos agua o una tortilla con chile dicen kórima, “comparte”, no mendigando una limosna, sino recordándole al mestizo la ley de la armonía que debe haber en todo, hasta en la propiedad de las cosas. El tiempo progresivo de Occidente es otra ficción: en realidad “es la vida moderna la que está atrasada y no los indios tarahumaras con respecto al mundo actual”. En la visión de Artaud hay por primera vez en el pensamiento occidental una inversión sígnica, una lectura por entero relativizadora: la aceptación absoluta de la superioridad moral (sagrada, poética por ende) del Otro. El tarahumara es el padre del hombre y si conserva claves para leer los signos de lo sagrado, lo hace con la encomienda de preservar la unidad original. La propia poesía moderna, en riesgo de convertirse en un remedo de sí misma, en un lenguaje artificioso y muerto, sólo puede salir de su letargo si se adentra en un lenguaje original y cargado de símbolos, como es la lengua-música rarámuri, que le devolverá su melopea adánica. Tutuguries el título del último poema de Artaud. Lo escribió unos días antes de su muerte, con el recuerdo aún vivísimo del viaje que doce años antes había hecho al extremo del mundo mexicano. Tutuguri es el rito negro dedicado a la gloria externa del sol. El rito de la noche negra de la muerte eterna del sol No, el sol ya no volverá. nunca”, según palabras del último iluminado de la poesía moderna. La lección que Artaud recibe de su viaje al otro México es una revelación crítica. Su mirada busca que nos despojemos del ego implícito de la visión “vencedora” y aceptamos un momento (o siempre) que los tarahumaras (y el mundo indígena) tienen claves aún para salvar lo sagrado, para reconciliar al hombre consigo mismo y con la naturaleza. Donde ha fracasado el hombre blanco podría decir su palabra antigua, poderosa y profunda el Hombre Rojo, esa extraordinaria raza a la que “ninguna civilización podrá dominar ***** RICARDO ECHÁVARRI (México, 1958). Poeta y ensayista mexicano. Doctor en Literatura, por el Colegio de México. Ha sido instructor de lenguas romances en la Universidad de Harvard y enseñado literatura en universidades mexicanas (UIA-Laguna, Culiacán, Campeche). Es autor de Novísimas instrucciones a los ángeles (2015) y Cuaderno de Durango (2007). Su Antología. México en la poesía surrealista está próxima a aparecer. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista invitado de esta edición de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80 Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) domingo, 10 de janeiro de 2016 VIVIANE DE SANTANA PAULO | O território imagético do escritor na pós-modernidade Qual o território imagético do autor? Como este território se forma em uma época em que os escritores viajam frequentemente de um país a outro, de um continente a outro, assimilando determinados aspectos das culturas estrangeiras, adotando símbolos e alegorias alheios mesclando-os aos de sua própria? Qual o território imagético do escritor residente no exterior que mescla as suas premissas às impressões adquiridas no estrangeiro? Viver no exterior possibilita o escritor de ver e julgar muitos aspectos do seu país natal por meio de um ângulo singular e abrangente. Não raro o escritor migrante ou exilado é induzido a tomar uma posição política nas conversações com amigos ou instituições no estrangeiro, e é conduzido, em determinadas situações, a representar o seu país. Tal condição induz o escritor a refletir sobre as suas próprias raízes de forma crítica e profunda. Por outro lado, perde-se a capacidade de julgar algumas mudanças e normas variáveis na sociedade do país natal, porque o escritor/migrante ou exilado não está acompanhando este desenvolvimento de perto. Quando antigamente a imigração significava a ruptura total com a pátria, hoje em dia, no início do século vinte e um, em virtude dos mecanismos da internet e em razão do desenvolvimento no relacionamento econômico entre os países o imigrante continua mantendo os vínculos com a pátria, acompanhando as notícias, falando com a família por meio do skyp ou celular, comprando os produtos importados da terra natal, trocando imagens atuais da família e do país. Ele vive a pátria de forma virtual e presente. Diferente do início do século vinte, onde tudo isso era quase inacessível e as viagens eram dispendiosas. Qual o compromisso de um escritor no tangente à sua nacionalidade? No caso dos poetas, a poesia é um gênero complexo e um processo basicamente emocional. Pega-se uma lembrança da infância, uma cena do cotidiano, uma imagem de São Paulo ou Berlim ou Granada, pega-se um grão de terra da caatinga, da areia do Saara, uma folha de coqueiro, um floco de neve, uma pedra do Reno, uma concha quebrada da praia, pega-se impressões, ou apenas um estado de espírito, e faz-se experimentos com as palavras e os pensamentos criando-se um poema. Ele nasce do subconsciente, mescla impressões e imagens independentes da nacionalidade. O poeta é o pintor, o escultor da língua. A poesia representa a imagem, é a metáfora do real. Nas palavras de Sartre: “o poeta está além da língua, ele vê as palavras ao contrário”, o poeta está do outro lado da língua como se estivesse do outro lado do espelho. A poesia espelha o mundo interior das coisas. Por este motivo, a tradução da poesia é um trabalho árduo e impreciso, às vezes, impossível, porque, em muitos casos, a imagem que o poema cria evocando determinada emoção no leitor, não corresponde a mesma imagem em outro idioma, e por consequência, não evoca a mesma emoção naqueles leitores. Agulha Revista de Cultura Em se tratando de narração, consoante ao ensaio de Juan José Saer, ”la narración no es un documento etnográfico ni un documento sociológico, ni tampoco el narrador es un término médio individual cuya finalidad sería la de representar a la totalidad de una nacionalidad. E Saer ainda menciona: La tendencia de la crítica europea a considerar la literatura latinoamericana por lo que tiene de especificamente latinoamericano me parece una confusión y un peligro, porque parte de ideas preconcebidas sobre América Latina y contribuye a confinar a los escritores en el gueto de la latinoamericanidad”. [1] Entretanto, não somente escritores latino-americanos estão submetidos a este tipo de rotulação, mas a maioria dos escritores que pertencem aos países não europeus, excluindo os Estados Unidos, Canadá e Austrália estão sujeitos à seleção partindo primeiramente do parâmetro da nacionalidade. De onde surgem os rótulos? Na opinião de Elvira Vigna, “o achatamento da fala é feito pelo mercado. Não há nada de ruim em ninguém. Nem em homem, nem em universitário do sudeste ou em heterossexuais. A formatação necessária às ações de marketing (que não se dirigem ao individual, mas sempre a um coletivo) é que é ruim. A formatação necessária desse ‘produto’ (a literatura vista como produto dá um workshopinteiro) [2] é ruim porque corta tudo que não se enquadra nos canais de venda, nos processos de venda já existentes e testados. É o maior atraso de vida, de criação.” As classificações existem e correm o risco de impelir o autor ao interior de uma gaveta de amostras, o que impõe fronteiras à sua criatividade ou prejudica a autentica interpretação de sua obra. A poeta norte-americana, Elisabeth Bishop, viveu no Brasil por quase duas décadas, a convivência com a cultura brasileira foi-lhe uma grande fonte de inspiração. No poema Manuelzinho e Meeiros o protagonista é um jardineiro caipira, típico da região interiorana brasileira. Bishop teve a oportunidade de conviver com pessoas simples, no Brasil, como os empregados da casa, a cozinheira, o hortelão, o jardineiro, e foram assuntos de inumeráveis cartas e alguns poemas. A norte-americana não escreve sobre sua identidade. A nacionalidade não faz parte de sua poesia, ela explora a sua visão particular de mundo, delineando seus sentimentos diante da realidade diversa à sua volta, e também daquela resgatada da memória. Em meu ensaio sobre Vilém Flusser indago: O que significa o espaço geográfico para a existência empírica do ser humano? O que é pátria? O homem está unido à pátria por um profundo vínculo, ela representa o berço — lugar em que as primeiras impressões da realidade, da vida e do mundo são criadas, espaço geográfico onde o Dasein se forma. O homem, além de espírito, é matéria e necessita da ligação territorial: do lugar onde é incorporado a uma soma de hábitos, normas e crenças, preestabelecidos, — cada pátria possui o seu conjunto específico, quero dizer — seu sistema político e cultural. O forte sentimento pelo espaço territorial de um dado sistema político e cultural resvala no amor incondicional. A pátria se torna o parâmetro e por seu intermédio são definidos os valores e funções dentro de um dado sistema. Mas, somente no estrangeiro, o nativo reconhecerá a profundidade e a dimensão de suas raízes.” [3] Vimos que a pátria possui um papel fundamental na literatura e o escritor não escapa do estigma da nacionalidade, mas no tocante à criatividade ele não precisa estar necessariamente preso aos seus valores uma vez que esses valores são variáveis. Há escritores que possuem a necessidade de captar novas formas de expressão e/ou outros símbolos e alegorias que interpretem melhor a sua proposta criativa. “Os tempos modernos, sob os efeitos da globalização, impelem o indivíduo a romper com os vínculos elementares, como os familiares ou territoriais, e a lançar-se em uma existência nômade”. Vale a pena lembrar que o fluxo migratório brasileiro vem ocorrendo desde os anos noventa, com algumas interrupções breves. O perfil do migrante brasileiro variou desde o início da diáspora até a atualidade. Nas últimas décadas, o migrante brasileiro inclui também o cidadão acadêmico. Quão nacional é um autor quando ele aborda temas estrangeiros? No caso do poeta Murilo Mendes, que viveu 18 anos na Europa, a memória possui um papel essencial uma vez que resgata a sua nacionalidade e a tematiza em seus versos, como podemos constatar neste poema, uma paródia do famoso poema de Gonçalves Dias: CANÇÃO DO EXÍLIO Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade! [4] Não só a temática nacional ou estrangeira faz parte do universo de Murilo Mendes, mas também o idioma italiano e francês. Escrever em um idioma estrangeiro faz o poeta menos nacional? No poema O menino sem passado significa: “fiquei sem tradição sem costumes nem lendas/ estou diante do mundo/ deitado na rede mole/ que todos os países embalançam”. Ao deixar o país natal Murilo Mendes apreendeu diversos aspectos novos e os inseriu em sua criação. O cenário de Murilo Mendes é ora o abstrato ora o brasileiro ora o cenário estrangeiro ou a mescla de ambos. São esses cenários que fizeram parte de sua biografia, entretanto, o seu território imagético, na maior parte, permaneceu sendo o Brasil, as coisas de seu país natal impregnadas em sua memória. No ensaio de Ricardo Llopesa sobre a poesia de Pablo Antonio Cuadra lemos o seguinte: “Si Rubén Darío es el poeta de lo cosmopolita, Cuadra lo es de su tierra, de lo nacional. En Diarío no hubo una poesía nacional. En Darío se dio la poesía que tocó temas nacionales, pero de una manera aislada. Por su parte, Cuadra funda la poesía de tema nacional, incorporando el lenguaje coloquial y la oralidad, diferente del lenguaje de refinamientos y esencias del modernismo y la literatura de lengua espanola.” [5] Ambos os poetas compatriotas possuem estilos distintos e embora Rubén Darío seja o poeta do cosmopolitismo, um grande representante da poesia nicaraguense, além das fronteiras nacionais, para Pablo Antonio Cuadra Rubén Darío “não criou uma poesia nacional”. Partimos do princípio de que o escritor precisa da liberdade e da perspicácia para captar novas formas de expressão e visões de mundo. Reduzir o seu trabalho ao âmbito nacional pode, de certa forma, criar uma fronteira entre a obra e os leitores. Por outro lado, buscar algo nativo na leitura, algo que revele a visão característica de uma determinada sociedade ou que denuncie a realidade sociopolítica de um país é algo legítimo e profícuo, pois não raro a literatura é um retrato estético das relações histórico-políticas de uma nação ou dos conflitos entre os povos. A literatura não é um fenômeno independente. Como afirma Moacir Dalla Palma, “literatura é criada dentro de um contexto, numa determinada língua, num determinado país, numa determinada época, onde se pensa de uma determinada maneira, carregando em si marcas desse determinado contexto”. O contexto hoje em dia é o da globalização, da mobilização (do sujeito libertado do estático), da intensa troca de informação e da célere evolução tecnológica no campo da informática, acrescidas das novas tendências e expansão da literatura no próprio território nacional. Na época atual são diversos os recursos que mesclam as diferentes culturas de forma natural. A internet possibilitou um grande, rápido e extenso intercâmbio entre as pessoas de todo o mundo, e entre os intelectuais. A fusão de diversos elementos culturais na literatura encontra-se na obra de vários autores de diferentes países, tornando a classificação de obras baseada na origem étnica e nacional dos autores cada vez mais complexa. Milan Kundera, um autor tcheco que escreve em francês, é considerado na França um escritor francês que nasceu na República Tcheca. O que determina a nacionalidade de um autor? O país em que ele nasceu ou a língua em que ele escreve ou o tema que ele aborda? Stuart Hall, em seu livro, A Identidade em Questão, afirma estarem as identidades modernas “descentradas”. Há uma fragmentação e interação de identidades modernas, em razão de as estruturas e os processos centrais das sociedades não serem mais as mesmas, as referências alteraram-se destituindo a estabilidade existente e criando novas formas e relações de identidade. Consideremos que a literatura esteja ligada a dois procedimentos distintos: primeiro, ao universo metafísico, abstrato, do autor e, segundo, ao contexto sociocultural e/ou sociopolítico partindo da visão mais obviamente influenciada pela realidade que o cerca. A meu ver, um não exclui o outro, ambos podem residir simultaneamente no meio literário, e a autenticidade pode estabelecer-se ora na forma e na linguagem, ora na temática ou no cenário escolhidos pelo autor. A nacionalidade, muitas vezes, exerce papel secundário. Voltando ao espaço de criação, cito Ingeborg Bachmann: “sem que o ANDRÉ BRETON escritor tenha consciência são os anos da infância seu verdadeiro capital… o que vem depois, e que até pode ser considerado muito mais interessante, em nada acrescenta, estranhamente, apenas que, anos mais tarde é que se começa a entender o que se viu com o primeiro olhar”, [6] sem dúvida são as suas raízes que caracterizam o escritor, que formam as suas premissas, e também as suas experiências sócio-políticas vividas em um país exercem papel fundamental na formação intelectual do escritor. O que fica refletido na literatura dos autores radicados no exterior é que esta literatura está além de apenas evocar o passado, as recordações da infância, e atravessam o processo de amalgamento das culturas. Por outro lado, alguns autores escolhem a ruptura com o passado e prefere a participação ativa e natural na existência da coletividade a sua volta situando sua ficção dentro desta coletividade/realidade fora de seu país natal. Sobretudo o idioma é o mais forte componente a definir a identidade de um indivíduo. Mas como fica quando há escritores de mais de uma nacionalidade e os que escrevem em uma língua estrangeira? Reporto-me a autora Zsófia Bán, nascida no Rio de Janeiro, em 1957, viveu cerca de doze anos no Brasil, filha de judeus, regressou a Hungria onde vive e escreve em húngaro. Zsófia Bán é uma autora brasileira que escreve em húngaro? É uma escritora húngara que possui em sua criação elementos da cultura brasileira? Sua infância no Brasil contribuiu para a formação de sua personalidade e em sua obra encontram-se associações autobiográficas subjacente no seu subconsciente que vem à tona mesclar-se com a nova cultura. Zsófia Bán ganhou vários prêmios. A coletânea de contos Amikor még csak az állatok éltek (Quando somente os animais viviam), traduzido para o alemão por Teréza Mora, Als nur die Tiere lebten, possui a maioria da narração partindo de uma imagem, de uma fotografia, as narrações desfiguram impressões fragmentadas de história da família, sobre o nascimento, a morte, a partida e o regresso da Húngria e América Latina. Em Esti iskola – Olvasókönyv feln•tteknek (Escola Noturna – Leituras para adultos), traduzido para o espanhol, por José Miguel González Trevejo, Escuela Nocturna, e para o alemão por Teréza Mora, Abendschule - Fibel für Erwachsene, Bán narra, entre outras histórias, a de um cientista que desapareceu na selva do Laos, a viagem para o Egito do jovem Flaubert com seu amigo Maxime ou a vida de uma mulher morta a tiros no Danúbio. São monólogos interiores que quebram com os tabus e apresentam questões da convivência humana. A brasileira norte-americana, Frances de Pontee Peebles, nascida no Recife, foi viver nos Estados Unidos, com cinco anos de idade, quando a família se mudou àquele país. Frances escreve em inglês, mas é indubitável a vivência brasileira refletida em suas histórias passadas no Brasil. Frances de Pontes Peebles ganhou o Prêmio Grand Fiction Prix de la revista Elle 2008, com a saga épica The Seamstress (traduzida para o português por Maria Helena Rouanet, A Costureira e o Cangaceiro, Editora Nova Fronteira), sobre a vida de Emília e Luzia dos Santos, duas irmãs órfãs, vivendo com a tia em Taquaritinga, no norte do Brasil, no início do século XX. Luzia casa-se com o bandido que a sequestra e a bela e delicada Emília com um rico médico. Seus caminhos se separam. Luzia torna-se a costureira, a criminosa foragida procurada pela justiça e Emília sofre de solidão. A autora desenrola um panorama histórico e demonstra a importância dos laços familiares. Frances de Pontes Peebles foi comparada a Gabriel García Márquez e Isabel Allende. Foi traduzida para o francês, espanhol e português. José Luiz Passos, autor pernambucano residente na Califórnia, escreve em português e obteve ampla repercussão de seu romance O sonâmbulo amador, premiado na edição 2013 do Portugal Telecom e do Prêmio Brasília de Literatura. A obra narra a história de Jurandir, funcionário da indústria têxtil pernambucana, internado em uma clínica psiquiátrica na cidade alta de Olinda, que começa a escrever seus sonhos, relatos do passado e informações sobre seu cotidiano. No entanto, José Luiz Passos é exceção, comum são autores como estes permanecerem ignorados pela cena literária brasileira. No Brasil, há importantes concursos literários que vetam a participação de cidadãos brasileiros residentes no exterior que escrevem em português, e intelectuais que defendem a ideia de que autor brasileiro é aquele que aborda temas tipicamente brasileiros e reside no território nacional. Diferente do quadro literário em outros países da América Latina que possuem tradição nesta área, como Gabriel Garcia Marques, que escreveu no México, Júlio Cotazar, Miguel Angel Asturias, Augusto Roa Bastos e Alejo Carpentier escreveram em Paris, Mario Vargas Llosa e Guilhermo Cabrera Infante em Londres e assim por diante, sem mencionar os países ricos onde é grande a abertura e a recepção das obras de autores multinacionais, onde há espaço para as diversas e mais exóticas tendências literárias que resvalam em suas respectivas culturas. Creio que um maior intercâmbio com escritores deste gênero certamente traria resultados frutíferos e a sua inclusão no mapa literário brasileiro faria deste mapa a de um universo literário, a de uma produção além do territorial. Mesmo porque: “Un escritor no se representa más que a sí” e que “todos los narradores viven em la misma pátria: “la espessa selva virgen de lo real” (Saer). O escritor, o artista em geral, possui papel de representante de sua cultura. Ele é o criador desta cultura, um dos componentes de formação da identidade nacional. No entanto, a liberdade de criação, a busca da originalidade ou de temas apropriados à visão de mundo particular do escritor contribuem para que ele desrespeite regras, conceitos ou fronteiras pré-estabelecidos pelo meio intelectual ou mercadológico, e siga o seu próprio caminho. O território imagético do autor é um espaço abstrato e complexo, repleto de caos, restando ao escritor o desafio de impor a sua obra, primeiramente, como uma contribuição ao entendimento entre as pessoas, ou simplesmente uma contribuição a uma leitura instigante, com o poder de aproximar e renovar a forma de pensar do leitor independentemente do apego restrito à nacionalidade. NOTAS 1. La selva espesa de lo real, México: Difusión Cultural UNAM, 1997. 2. Blog Grupo de Estudo em Literatura Brasileira Contemporânea, A insustentável existência do outro, Carol Almeida. 2015 3. A migração como expansão da realidade e renovação das cultura, Flusser Studies 03, 2003 4. Mendes, Murilo, Canção do Exílio, Poesias, 1925/1955. Rio de janeiro: J. Olympio, 1959 5. Anales de Literatura Hispanoamericana, La poesía de Pablo Antonio Cuadra, RICARDO LLOPESA MC. de la Academia Nicaragúense de la Lengua, 1999, 28: 867-889 6. Agulha Revista de Cultura, A tríade campo, rio e lago de Ingeborg Bachmann, Viviane de Santana Paulo. 2002. http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/10/viviane-de-santana-paulo-triade-campo.html ***** VIVIANE DE SANTANA PAULO (Brasil, 1966). Poeta, tradutora e ensaísta. Fundou a União de Escritores Brasileiros da Alemanha (UEBRA). Organizou encontros de escritores brasileiros na Alemanha, na Universidade de Colonia e na Casa da Língua e da Literatura, esta última em Bonn. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura ARC Fase I (1999-2009) | Agulha Hispânica (2010-2011) | ARC Fase II (2012-2016) domingo, 10 de janeiro de 2016 Agulha Revista de Cultura JACOB KLINTOWITZ | Marcello Grassmann: matéria dos sonhos Talvez nada seja mais belo, poético, revelador, profético e inspirador do que a “Tempestade”, de 1612, a última peça de Shakespeare (15641616). E, é provável, que este texto outonal seja o testamento do poeta, a derradeira mensagem, a sua síntese sobre a humanidade e a saga dos homens. Nele, Próspero, a sublime criatura sonhada por William Shakespeare, define a natureza do homem e da vida: “Somos feitos da matéria dos sonhos”. Ao contemplar as formas criadas por Marcello Grassmann, a extraordinária qualidade do seu desenho, o aprofundamento do tema de maneira tão elevada e com tanta propriedade, resta em nós a convicção de que entramos num universo antes desconhecido e agora revelado pela lucidez do artista. Este mundo que ele nos descobre e do qual sentimos que dele habitava em nós certo conhecimento, agora recuperado e reconhecido, esta enevoada e submersa realidade: a estranheza deste lugar de cavalheiros e armaduras, animais míticos, seres das sombras, quimeras, donzelas intangíveis e belas, e no qual o destino paira sobre todos. É o mundo feito da mesma matéria de que se fabricam os sonhos. Marcello Grassmann elabora com a matéria sutil e a sua revelação é a de uma estrutura metafísica e ideal, densa e soberana, mas, e aqui uma das marcas do artista, construída na atmosfera da energia delicada e inapreensível, aquela feita de mitos e fábulas, que somente se acende quando a consciência adormece. Este universo manifesto é fatal e impassível, e só nos contempla como personagens. Muitos poderão acreditar que se trata do resultado de uma vida inteira de trabalho e do aprimoramento de um artista que, afinal de contas, aos 87 anos, foi um dos nossos decanos, patriarca e santo protetor da arte brasileira. E também teria razão. Ou certa razão, o que é menos do que a razão. Pois Marcello Grassmann (23.9.1925 – 21.6.2013) desde o seu início sempre se destacou devido a sua originalidade e extrema consciência de sua individualidade. Entretanto, o artista, com o tempo a favor para elaborar a própria identidade artística, afirmou de maneira esplêndida a singularidade de sua iconografia. Marcello Grassmann, um dos artistas destacados dos séculos XX e XXI, é referência seminal da arte brasileira. A respeito de artistas e intelectuais que guardam durante a vida a coerência a suas ideias fundamentais, Gilbert Keith Chesterton foi definitivo, em famoso e crítico ensaio de 1905 sobre o seu amigo George Bernard Shaw, “O Sr. Bernard Shaw” (Hereges. G.K. Chesterton. Tradução de A. E. Angueth de Araújo e Márcia X. de Brito. Ed. Ecclesiae. Brasil. 2014.): Sei perfeitamente o que o Sr. Bernard Shaw estará dizendo daqui a trinta anos; estará dizendo o que sempre disse. Na verdade é um grande erro supor que a ausência de convicções definidas proporcione agilidade e liberdade mental. Um homem que acredita que qualquer coisa seja imediata e espirituosa o faz porque traz consigo todas as defesas. Pode aplicar o seu teste num instante. O homem empenhado num conflito com alguém como o Sr. Bernard Shaw pode supor que ele tem dez faces; da mesma forma, um homem que inicia um duelo com um brilhante espadachim pode imaginar que a espada do inimigo tenha se multiplicado por dez. Mas, realmente, não é porque o homem esteja lutando com dez espadas; é porque aponta com uma única, para um objetivo especifico. Ademais, um homem com uma crença definida parece sempre grotesco, porque não muda com o mundo. Está sobre uma estrela fixa, e a Terra gira, lá embaixo, como um zootrópio. Milhões de homens de paletós escuros se consideram sãos e razoáveis simplesmente porque sempre aderem à última insanidade, porque correm de loucura em loucura no redemoinho do mundo. Do assunto e do tema. No caso de Marcello Grassmann o assunto é fundamental. Existe a qualidade excepcional do seu desenho e a maestria de sua gravura. Isto é óbvio e é deslumbrante. Por muitas décadas o “assunto” foi banido das artes plásticas em favor do tema, entendido como composição, linha, cor, ritmo, intenção - sim, havia isto, a “intenção”, uma espécie de discurso com objetivo moralístico, político ou de percepção modificada. E ainda existe, fortemente impositivo, tanto é que os artistas e os seus eventuais arautos fazem declarações de princípios, escrevem textos para acompanhar as suas obras e exposições, enfatizando a sua “intenção”, o que pretendem e qual o problema estético, sociológico ou moral colocado, ou, o que é notável, a maneira como se propõem a modificar a percepção do público ou, mais incrível ainda, como querem alterar as opiniões do público sobre vários assuntos… Pode alguma coisa ser mais totalitária que esta pretensão? De qualquer maneira, como a atualidade artística do circuito oficial entronizou o objeto numa espécie de novo naturalismo travestido de vanguarda (um termo militar), evita-se falar em assunto e tema. É impossível entender ou perceber o trabalho de Marcello Grassmann sem levar em conta o assunto tratado. É em torno desta essência que ele elabora. É claro que isto não elide considerar o tratamento deste assunto, a abordagem, a maneira como é feito, os liames históricos, o lugar no espectro espiritual em que o artista se situa ou com o qual se identifica. Talvez não seja necessário para alguns conhecer a tradição desta iconografia e a maneira como ela se coloca na história das ideias e na história religiosa e mesmo na sua trajetória mística ou mitológica. Ou de que maneira esta iconografia se insere na história das civilizações. Para algumas pessoas será suficiente apenas a identificação emocional, a compatibilidade com a vibração do artista, a percepção do terrível ou do maravilhoso que esta obra encerra em si mesmo. O pavor ou o deslumbramento. E transformar para si mesmo - quem sabe? - que o fantástico, cerne desta obra, nada mais seja do que o cotidiano, o dia-a-dia finalmente observado ou aceito. O fantástico banalizado. Mas acredito que estes são poucos e, mesmo para estes, me parece que é insuficiente. É preciso dizer com clareza que há gradações de entendimento. E uma hierarquia de gosto. Mesmo quando nos referimos ao paladar gastronômico, há diferenciações e graus. Não basta dizer gosto ou não gosto se se pretende um encontro profundo com a produção cultural. Em arte a nuança é tudo. Mais que a nuança, o subjacente é tudo. O que permeia, o não explícito, o intervalo, o silêncio entre os ruídos, o oculto entre os sinais, o simplesmente impregnado. A nuança é o sol e a lua, o dia e a noite e, quando se trata de Marcello Grassmann, o subjacente é a treva e o diálogo entre o perecível e o destino, entre a fragilidade do vital e a entropia da morte. Em certos artistas o assunto e o tema estão de tal maneira impregnados um do outro, estão tão mesclados, que não é possível saber onde está um, onde está o outro. A separação não os tornaria independentes, mas anêmicos. Neste caso o assunto não é a anedota visual ou literária, a descrição de uma situação, o encadeamento lógico ou associativo de eventos; o fundamental é o mistério da narrativa, a gesta da aventura humana transformada em linguagem. Em ritmo. E forma. E símbolo. Note-se que há, igualmente, diferença essencial entre o sinal e o símbolo. O sinal faz parte da comunicação imediata e o símbolo, por representar o núcleo essencial e modelar de um conceito é permanente. Hoje, com o rebaixamento que a sociedade de massa almeja como proposta existencial, se é que podemos chamar assim, o que muitos querem é que o sinal seja a essência e, com isto, eles se salvariam da mediocridade, pois todos estariam no mesmo patamar de insignificância. A sociedade de massa odeia a diferenciação. Ama a bravata – a nacionalista, então… – e abomina a reflexão. No século vinte nós escutamos falar que o assunto não interessava. Era um dogma. O assunto era uma anedota literária, resquício de rituais narrativos ultrapassados. E a arte, agora, apenas se ocuparia de seu verdadeiro objetivo, o tema. Ai a essência da atividade artística, a cor, a forma, o ritmo, a composição. A razão de ser da arte, a sua natureza, um substrato que poderia ser identificado mesmo nas obras de outros períodos históricos. Para os artistas, o assunto, esta concessão literária, sempre teria sido um véu encobridor, um disfarce, capaz de tornar a obra de arte acessível a mecenas e público obtusos. Agora, finalmente libertos dos grilhões e dos rituais, os artistas nos apresentariam a arte pura, a arte feita de formas e cores. Durante muitos anos houve um delírio formal, novas regras, grupos inteiros de artista a trabalhar de maneira semelhante, a produzir obras quase idênticas. O jogo era tão atraente que todos se envolviam nestas manifestações da inteligência, nestas sutilezas, neste formalismo que parecia expressar tudo, explicar tudo e, na sua amplitude abstrata, contar qualquer coisa ou exatamente aquelas coisas que nos interessassem. A abstração formal, por seu caráter metafísico ou por sua essencialidade, pode ser mercurial, adaptada ao tamanho da consciência que a contempla. Entretanto, a vida social e humana, não parece obediente aos ditames da proposta racionalista e iluminista, inclusive ao conceito da arte como uma evolução permanente, como parece ser o caso da história da ciência. Ao longo destes tantos anos que nos vem do impressionismo, os homens continuam sequiosos de imagens figurativas, de símbolos figurativos e a sociedade continuou a produzi-los. Às vezes, através da arte; outras ocasiões, através das novas expressões e mídias surgidas, como a fotografia, o cinema, a televisão, a holografia, o computador; ou nas artes aplicadas, como nos objetos utilitários, nas artes gráficas e na publicidade. A arte, apesar das teorias reducionistas, de qualquer maneira, não se esquecera das imagens figurativas, como o provam as expressões realizadas, sob rótulos diversos e levemente mistificadores, como os metafísico, surrealismo, pop art, nova figuração, hiper-realismo, fauvismo, romantismo, expressionismo, etc., Títulos justificatórios para permitir ao homem contar as suas fábulas. Nestes casos, permanentemente, o assunto e o tema parecem confundidos e o desprezo (historicamente recente) pelo assunto mais confuso e injustificável ainda. No caso do artista brasileiro Marcello Grassmann o assunto e o tema são uma única e mesma coisa. Idênticas. Não há diferença entre o que o artista conta e a sua arte. No seu trabalho a divisão conteúdo e forma não tem sentido, pois o seu conteúdo narrativo é a sua própria forma. Na medida em que o jovem artista avançou para a plenitude, o assunto se define, organiza e esclarece. Este amadurecimento era observável pela cristalização do assunto. Grassmann domina o seu assunto e isto o coloca como um artista senhor do seu ofício e seu tema e assunto. Ele é capaz de fazer aflorar, com pleno domínio, essas figuras e cenas e elas só são capazes de surgir quando o artista está receptivamente preparado; mente disponível, mão habilidosa, recepção e transmissão. Para Marcello Grassmann o percurso e a maturidade estiveram ligados à emergência e aceitação do seu assunto. Na medida em que o artista deixou-se submergir no oceano de sua estranha memória genética, percepções e vidências, mas emergiu uma arte grandiosa e segura e mais se estabeleceu o pleno domínio de uma fatura virtuosa, tornando esta arte abrangente e completa, digna representante de uma família expressiva de permanente tradição na história das civilizações. Até agora falamos do assunto Grassmann, na tradição expressiva, memórias, percepções, vidências, recepção, transmissão e mente disponível. Certamente é hora de tornar estas palavras em conceitos mais explícitos. Da história e da filiação. Marcello Grassmann está vinculado ao grotesco, é filho do grotesco, ele emerge desta linhagem artística plena de imaginação, volutas, representação de formas e ideias excêntricas. O próprio grotesco (a origem é a grota, caverna) sofreu transformações ao longo dos anos e o termo já foi tão usado que pertence ao rol das palavras desgastadas, excessivamente manipuladas, com e sem propriedade. A palavra foi usada originariamente para designar um tipo de ornamento descoberto na Itália em escavações realizadas no século XV. Era uma arte não romana, antiga e, na verdade, um velho fenômeno expressivo anterior ao apelido. Para alguns o grotesco deveria incluir as artes chinesa, etrusca, asteca, germânica e, simplesmente, toda arte antiga. A primeira condenação conhecida do grotesco é do grande Marcus Vitruvius Pollio (Séc. I a.C.). O famoso desenho de Leonardo da Vinci, “O Homem de Vitruvio”, é justamente uma resposta renascentista ao seu trabalho teórico e uma constatação das proporções ideais do ser humano a partir da colocação de Vitruvius sobre o número de ouro ou da proporção divina. Marcus Vitruvius Pollio era um brilhante homem de pensamento objetivo, límpido, racional. Era um clássico. Ele nos diz o seguinte: …todos estes motivos provenientes da realidade são rechaçados, agora, por esta moda injusta. Pois, agora, se prefere pintar nas paredes, monstros no lugar de reproduções claras do mundo e dos objetos. A luta entre o realismo objetivo e o realismo psicológico ou entre o naturalismo e a imaginação, entre o clássico e o romântico, faz parte da história da humanidade. De qualquer maneira, os conceitos do grotesco se alargaram tanto, houve tão ampla sorte de sutilezas que é, talvez, mais interessante o deixar como uma referência básica e genérica. Marcello Grassmann pertence ao grotesco e ao fantástico, como Hieronymus Bosch, Giuseppe Arcimbold, Giovanni Piranesi, Brueguel, Gustave Moreau, Francisco Goya. Odilon Redon, William Blake. E cada um deles, como tantos outros que poderíamos elencar, é diferente dos demais. Na verdade certos rótulos são mais gavetas facilitadoras das classificações históricas do que rigorosas normas definidoras e definitivas. E cada um destes artistas é diferente dos outros, tem personalidade única. Evidentemente os rótulos ou as classificações facilitam o exercício didático, ainda que, às vezes, dificultem o diálogo com a individualidade. É como o expressionismo onde, evidentemente, Marcello Grassmann pode ser colocado. É um termo excessivamente amplo e tem a sua tônica no domínio da emoção sobre a razão. O exemplo mais conhecido desta oposição é ilustrado por Eugene Delacroix versus Dominique Ingres. Delacroix é o heroico percursor do gestual, da pincelada matérica, da simplificação, da emoção. Ingres é o autor do desenho, do traço preciso, do contorno perfeito, do domínio da razão. Dai poderíamos concluir que a pintura é a emoção e o desenho expressa o raciocínio, o pensamento. Mas o que dizer das pinturas que falam a partir do raciocínio lógico e do desenho que é puramente emocional e gestual? A cada caso, a cada artista, a sua individualidade. E a nós, os que os contemplamos, a cada um deles o nosso particular e intransferível envolvimento. Figuras. Fantástico. Símbolos. Como também ocorre em Shakespeare, na citada “A tempestade”, que igualmente gerou esta inquietação, podese dizer que estas inusitadas figuras não humanas - inabituais, bichos, quimeras e seres das trevas - desenhadas e gravadas por Grassmann, são desumanas ou formas de desumanização? Estas figuras são míticas, ancestrais, primevas, primeiras, anteriores à consciência, posteriores à consciência, antes da civilização, antes do alfabeto, pertencentes ao mundo imaterial do vento, do ar, das trevas, animais compostos, quimeras, seres de imaginação, seres da imaginação. Ou são seres fragmentados, partidos, incompletos, divididos, ansiosos ou desejosos de integração, de serem um e não dois. Projeções do desejo de se tornar uno, de se tornar claro, de se tornar evidência, de sair das sombras para a luz nas mãos de um mestre alquimista como Grassmann? Das trevas para a luz, da obscuridade para a evidência, para o pleno ar, do escondido para o manifesto, concretude materializada para o nosso olhar, o nosso espanto, para o nosso confronto com a nossa eventual certeza de sua impossibilidade e a nossa frágil identidade diante de sua ferocidade impassível, a sua ferocidade íntegra e sem maldade, a sua realidade total, inocente porque apenas ser, apenas o que é, ou, sobretudo, por ser apenas o que é e nada mais do que isto, sem outras intenções, sem projeto futuro, sem modelo a ser alcançado, sem figura idealizada no mundo das perfeições, sem ser sombra de hipotética realidade verdadeira, já que é imagem de si mesmo, realidade primeira e última, pois não é um ser em transformação. É um ser sem projeto de vir a ser. As figuras de Marcello Grassmann são arcaicas, guerreiros, damas, animais, híbridos, quimeras, animais construídos com partes diversas de outros animais ou seres. Há semelhanças com a icnografia medieval, e não só com a medieval, mas estas figuras são elaboradas como protótipos, estáticas, como símbolos. O que lhes confere uma atmosfera atemporal. É inevitável pensar que elas sempre existiram e sempre existirão. Não há qualquer referência temporal fora delas mesma. Não há arquitetura ou objetos significativos e determinantes. A partir de certo ponto há pequenas referências arquitetônicas, ornamentos, colunas. Algumas lanças, talvez, estes objetos de tantas civilizações. Mas isto não altera a natureza destes personagens. E como são figuras arcaicas e atemporais, a perenidade lhes confere, por sua vez, a fatalidade. Eternamente esta cena e este olhar se repetirão. Por outro lado, elas são apresentadas como o existente. Não há por parte do artista juízos críticos, postura moralizadora, condenação ou louvor. Estes personagens são o que são. Não são pretexto para se contar uma fábula cheia de sinais, ideias, descrições romanescas. A figura é já um símbolo. Ela não participa de uma fábula. Desta maneira, em Marcello Grassmann as figuras são arcaicas, atemporais, amorais, simbólicas e fatais. Por estas características entende-se porque estas figuras e cenas são diretas. Não há interesse no processo criativo do artista pelo analítico, pela descritiva e decodificação progressiva dos elementos. A força do trabalho reside justamente na sua capacidade de se tornar em um único pensamento, uma única imagem. O espaço-tempo obedece a mesma intenção unificadora. Tudo se passa como se estivéssemos tratando de categorias. O idioma do artista é requintado, próprio, inconfundível. O seu vocabulário é pessoal, tem a sua marca e estes símbolos, estas figuras, formam um universo particular e diferenciado. O fato de este universo - segmento, mundo, grupo, iconografia, dimensão - pertencer a um universo maior e afim, estruturas compatíveis, o que nos sugere universos sucessivos, não lhe rouba a individualidade, antes a acentua. A diversidade no semelhante. O único apesar da simetria. O singular e a afinidade com o todo. Lembra-nos o diálogo em Gil Vicente, o dramaturgo português da transição da idade Média para a Renascença, a extraordinária conversa entre “Todo Mundo” e “Ninguém”. Ou em Homero, quando Ulisses serve vinho para o ciclope Polifemo, se identifica e lhe diz o seu nome daquele momento, “Ninguém”. E quando cega o gigante Polifemo este informa aos irmãos: “Quem me feriu foi Ninguém”. Ao colocar o seu navio no mar, Ulisses grita para o gigante: o meu nome é Ulisses. E, naquele momento, assume o seu destino, a sua suprema individualidade, e enfrentará o oceano tornado tormentoso por Posidon, senhor do mar e pai de Polifemo. A característica atemporal da cena e o fantástico das figuras em Grassmann representam uma intervenção na ordenação rotineira do nosso mundo. O modelo criado pelo artista nos coloca diante de uma realidade inesperada e não verificável. Um palco onde evoluem, sistematicamente, seres dotados de intrínseco vigor. A força do destino. A sua natureza e o seu destino são a mesma coisa, vale dizer, o ser e a função são a mesma coisa. Existem para exercer uma missão e esta é a sua natureza. São seres intencionais, seres-função, seres destinados, seres pensamento, seres sem livre arbítrio. O arbítrio e a opção existem tão somente nos guerreiros, é característica humana, e este é o seu destino. Esta me parece a cena suprema do universo. Grassmann com os seus símbolos e categorias; os seres em função e os seres em opção. Os seus personagens, únicos e votivos, ao final de uma saga, permitiriam uma alegoria, ou simples verificação; a existência do destino elemental e a existência da opção humana por sua individualidade e o seu destino. Seres das sombras. Elementais. Bestiário medieval. Não são só animais míticos, mitológicos, lendários, compostos. Formas-pensamento. Seres criados pela energia humana, por seus pensamentos, por seus sentimentos de medo, ódio, cobiça, desamor. Tema permanente na obra de Grassmann, na qual o fluxo da vida, a vitalidade, sempre está em oposição com a finitude, a tragédia, a vida perecível, com os poderes da sombra, com a transação com a parte escura, negra, sombria, com os elementais Súcubo, a forma feminina, e Íncubo, a forma masculina. Seres da sombra, energias perversas que se metamorfoseiam em formas atraentes para suscitar sonhos eróticos, práticas sexuais no sono, no sonho, e em estados obnubilados. O objetivo lendário mais conhecido é sugar a energia sexual humana. Sugar a energia em geral. Seres das trevas que vampirizam o mundo dos vivos, dos tridimensionais, e se alimentam da vida terrena. Relação perversa, parasitária. Talvez eles surjam e se aproveitam dos humanos que deixam brechas, fissuras, entradas, dos que tem como substrato da libido justamente este tipo de fantasia ou perversão. Projeções plasmadas no astral. O astral é o reino da ilusão. Cavalo, cavaleiro, lobo, cachorro, macaco. Dominar o cavalo é sinal de glorificação. Vide as estátuas equestres que representam a glória dos grandes guerreiros. Mas dominar o cavalo tem o significado maior de dominar as forças da natureza. E dominar as forças adversas. Os chefes militares ou políticos elevados à condição de estátua equestre estão alçados ao olimpo, paraíso, local dos deuses, heróis, eleitos. Cavalo também é um animal ctônico. Ele domina as entranhas, o interior da terra. Ele conduz o homem no interior da terra, no mundo de Plutão. Filhos de Lilith. Demônios, seres da sombra, seres que não contemplam Deus. Filhos de Lilith, a primeira mulher de Adão, segundo lendas hebraicas. A lenda conta que Lilith não aceitou a relação com Adão que sempre fazia sexo sobre ela, pois não se achava inferior a Adão e queria fazer sexo em condições igualitárias, sem domínio de um ou outro. Lilith sai do Paraíso e não aceita que os anjos a levem de volta. No exilio tem centenas de filhos, todos demônios. Lilith assumiu o seu próprio destino, a sua natureza, é o ser diante do mundo. Lilith recusou a proteção divina e as regras impostas por Deus às suas criaturas. De certa maneira, Lilith cria o seu próprio metro. Os filhos da lendária Lilith são personagens de Grassmann na recriação do mundo. Marcello Grassmann não nos devolve o paraíso, mas o mundo a partir de Lilith. …Quando alguém escreve, mesmo de modo realista, sobre o mundo, esta pessoa está escrevendo uma história fantástica porque o próprio mundo é fantástico, insondável, misterioso. [Joseph Conrad. Prefácio de The Shadow Line] É constante em Marcello Grassmann a junção entre forças anímicas e humanas. Entre a natureza mais pujante e o ser humano. É de tal maneira permanente esta oposição ou, ao contrário, esta ligação, que, por vezes, suspeitamos tratar-se de um só ser, talvez representado em desdobramentos. É evidente que podemos fazer várias conjeturas sobre este cenário sonhado pelo artista, e que mais de uma verdade seja veraz. E isto por duas razões. Podemos conjeturar, pois o autor destas imagens é humano, como nós, e tem o nosso mesmo oceano incógnito e inconsciente. E - é possível que este seja o principal argumento a favor da simultaneidade de verdades na obra de Grassmann – as suas figuras são arquetípicas, permanentes na história da espécie, modelos geradores. Tenho para mim que Grassmann sempre teve acesso a este manancial e que o essencial de sua produção é feito com símbolos. E os símbolos, por sua própria natureza, é um núcleo essencial que se presta a uma infinidade de significantes e que não se esgota com uma única interpretação, mas se abre a cada nova geração e a cada ser para novos entendimentos. O tema da morte e da donzela, tão presente na Renascença, e tão forte em certo momento na obra de Grassmann, é a personificação deste embate entre opostos ou, o que provavelmente é o mais próximo da intenção do artista, é o confronto do ser humano com o seu inelutável destino. O diferencial entre o ser humano e a vida puramente animal é a consciência que é identificada, fundamentalmente, pela percepção do tempo. O homem é aquele que sabe que morrerá. Na “A morte e a donzela” a morte rouba, se apropria, toma a vida da jovem virgem, suga a energia da vida, interrompe a existência. De certa maneira, existe um processe de sedução; a morte busca a adesão da juventude. O núcleo do mito é a morte antes da plena experiência vital, o término ainda sem experimentar o amor adulto, sem a vivência do prazer afetivo, emocional, sensorial. Os homens costumam atribuir esta crueldade aos deuses e ao destino. De qualquer maneira, a relação e o confronto com a morte estão no cerne da consciência do ser. Na Idade Média e na Renascença a Morte e a Donzela é motivo de muitas representações na pintura, na dança e na música. Entre nós, é muito conhecida a “A Morte e a donzela” para Quarteto de Cordas nº 14, em Ré menor, escrita por Franz Schubert, em 1817. Schubert se baseou no poema de Matthias Claudius. O centro do confronto é a recusa da donzela em ceder, a tentativa de convencimento da morte, e a impotência humana diante do destino. É comum, nestas representações, associar a morte com o sono, com o adormecer, com a paz, com o término dos conflitos. Ainda que em Shakespeare, (inventor do homem moderno, segundo Bloom) ,em Hamlet, ele indague: “Que sonhos pode haver neste sono da morte?”. Em Marcello Grassmann não se indaga sobre a natureza da morte e da vida possível no sono da morte. No seu caso, o sonho é a própria imagem da jovem e da morte e o caráter estático da cena, a imobilidade das figuras, a serenidade como atmosfera. De resto, como em boa parte da obra do artista, existe um clima de uma realidade metafísica não subordinada à materialidade convencional. A obra de Grassmann é a manifestação e o registro deste sonho. A respeito da individualidade do artista e da função de sua obra, existe uma declaração de Pound que é muito apropriada: O trânsito desde a recepção do estímulo até o registro, até a correlação, é isto que consome a energia de toda uma vida. Outra luta tem se travado para conservar o valor de um aspecto local e especifico, de uma cultura especifica, neste terrível turbilhão, nesta terrível avalanche em direção à uniformidade. Toda esta briga é pela conservação da alma individual. O inimigo é a supressão da história. contra nós está a propaganda atordoante, a lavagem cerebral… Gente que perdeu a reverência perdeu muito. [Ezra Pound. Entrevista Paris Review] Do método. Ou de como ter acesso. Não há maneira de penetrar em outro espaço-tempo senão a mais antiga das maneiras, a vidência. Não vale a pena discutir aqui se existe objetivamente este outro espaço-tempo e se existe a vidência. Na arte e no misticismo este universo metafísico existe e o seu registro é amplo, constante, pertence a todas as civilizações. A curiosa discussão sobre o dimensionamento do real e do existente, onde o método é sempre o reducionismo ao puramente circunstancial, não nos leva a nada, salvo às posições arbitrárias. Para a crítica de arte o existente é o signo criado pelo artista. O alfabeto onde a crítica bebe é o composto pelos signos registrados e organizados pelo artista. Saber se realmente estes signos é o fiel retrato de uma realidade objetiva pressupõem muitas coisas, inclusive um interesse pela justaposição de formas, pelo decalque naturalista (aliás, nada mais intelectual e antinatural…) para nós a questão é clara: o universo onde circula e se expressa Marcello Grassmann existe, como o provam, os seus desenhos e gravuras. Marcello Grassmann penetra neste universo não cotidiano da mesma maneira como isto sempre ocorreu, através da vidência. E a vidência não é um estado de delírio. Ao contrário, é um se colocar noutro tempo e espaço conservando a lucidez e a memória. O vidente é aquele capaz de retornar com a memória da visão. Por outro lado, a arte sempre foi produzida por homens em estado especial. Criar formas e cores sempre foi o resultado de um processo onde o método é se colocar de acordo. Este acordo prevê um parceiro inesperado, sobre o qual se sabe pouco. Com quem o artista se põe de acordo? Ou é a própria espécie humana; ou o seu inconsciente; ou no reino dos arquétipos; ou entidades superiores. E este acordo prevê um papel para o artista: no ato da criação ele é médium, ainda que, em análise restrita, de si mesmo. O que parece certo pelas experiências registradas, é que o artista permanece em estado de alerta, com a mente receptiva, despido de uma racionalidade coercitiva. Há outro dado da questão, na área da iconografia do artista, extremamente relevante: é o fato de o seu trabalho ser aceito e compreendido por outras pessoas. O fato de o trabalho encontrar o seu ambiente e circuito de comunicação é relevante, pois os outros homens entendem, reconhecem – quem sabe? – se reconhecem nestas imagens. O que nos devolve ao proceder do artista. Pois, se outras pessoas são capazes de encontrar e reconhecer as imagens-Grassmann, a percepção do artista não terá feito outra coisa senão o registrar e organizar aquilo que as pessoas obscuramente já sabiam. Estas imagens são novas, produzidas pelo artista, mas há memórias semelhantes em outras pessoas, a tal ponto semelhante que são capazes de identificar estas figuras. Desta maneira, poderia ser dito que o principal dado da vidência não é o ver, mas o permanecer consciente, o saber que viu. A vidência, de uma maneira qualquer, parece comum a todos os homens, dada a universalidade da arte e do símbolo. O particular seria o guardar conscientemente esta vidência. E, no caso mais particular ainda, o caso do artista, seria o guardar a memória conscientemente e ser capaz de torna-la forma. O artista seria um informador. O formador da consciência. Sejam em que universos, locus, forem – arquétipos, inconsciente, outras dimensões temporais – o mergulho do artista é o ponto afirmativo do uso criador e instrumental da imaginação e da aceitação do oculto como uma ciência, um saber. A imaginação não é uma filha de ninguém. É impossível imaginar sem linguagem. A imaginação é um produto comunitário. Dai o imaginar ser instrumental do conhecimento. Parte-se do referencial para, em processamentos sucessivos, projetar no tempo. No imaginar, ainda que a partir de um universo referencial, comunitário, o homem realiza um ato particular. Este ato não é provado e não é reproduzido em condições semelhantes. O ato de imaginar, o ato individual de imaginar, não é integralmente reproduzível em circunstâncias idênticas e, sendo assim, não é cientifico, segundo o padrão newtoniano. Ao artista cabe o ônus de um ato não cientifico e não provado, mas apresentável por meio de formas. Como estas formas não representam uma ação científica, uma ciência, por inferência, estas formas expressam o improvado, o intuído, o oculto. O instrumento conhecedor expressivo utiliza como método a vidência e a imaginação e cria um campo de ação típica de origem oculta e de natureza esotérica. Apenas o colocar-se de acordo tornará o espectador entendedor e conhecedor. Ai reside o esoterismo da compreensão formal na arte: exige-se do espectador uma atitude especial, criadora, imaginadora, evocativa. Em certo momento, para que haja comunicação, obra e espectador devem participar do mesmo mistério. Artista e espectador devem descrer da racionalidade como único instrumento aferidor do existente, isto é, do real. Ambos, para exercer seus respectivos papeis, devem aceitar o inexplicável, o não catalogado, o oculto. Em outras palavras, é impossível o exercício da arte sem aceitar o irracional como método e campo de ação. Sobre o método e o trabalho do artista, Italo Calvino, artista e pensador europeu de alta estirpe fez um depoimento significativo: Ou pelo contrário, porque não existe verdadeira integração humana numa miragem de totalidade ou disponibilidade ou universalidade indeterminada, e, sim, num aprofundamento obstinado daquilo que se é, do próprio dado natural e histórico e da própria escolha voluntária, numa autoconstrução, numa competência, num estilo, num código pessoal de regras internas e de renúncias ativas, a serem seguidas até o fundo? O relato me conduzia por sua espontânea propulsão interna àquilo que sempre foi e continua sendo o meu verdadeiro tema narrativo: uma pessoa se impõe voluntariamente uma regra difícil e a segue até as últimas consequências, pois sem esta não seria ela mesma nem para si nem para os outros. [Italo Calvino. Prefácio para Os nossos antepassados (Il nostri antenati). Tradução de Nilson Moulin.] O painel de Marcello Grassmann no Palácio dos Bandeirantes. Em 1989 a crítica de arte Radha Abramo, Curadora dos Acervos dos Palácios do Governo de São Paulo, como era do seu modo de ser, resolveu instituir uma comissão e um júri para escolher o novo painel do Palácio dos Bandeirantes para substituir o painel “Tiradentes”, de Candido Portinari que seria transferido para o Memorial da América Latina. Habituada à luta contra o totalitarismo da ditadura no Brasil, a combativa Radha Abramo, pessoa amável e querida de todos, sempre preferia soluções colegiadas e democráticas. Éramos muitos: José Roberto Teixeira Leite, Casimiro Xavier de Mendonça, Carlos A. Cerqueira Lemos, Ernestina Karman e eu. Tratava-se de um concurso fechado, pois escolheríamos os candidatos. Por votação, após longas discussões, os artistas convidados foram Antonio Henrique Amaral, que terminou por ser o vencedor, Claudio Tozzi, Emanoel Araújo, Valdir Sarubbi, Sérgio Ferro, José Roberto Aguillar e Marcello Grassmann. A sugestão do convite ao Grassmann foi do Casimiro Xavier de Mendonça, crítico culto, sensível e de escrita refinada. Eu discordei por ver o artista vocacionado para a subjetividade e pequenos formatos. Eu argumentei que o Marcello não poderia fazer este painel, que isto era visceralmente contra a natureza do seu trabalho, postos ao método dele, contra o seu processo de criação. Casimiro argumentou que seria um desafio para o artista e ganhou a votação. Eu fiz uma espécie de piada (sem graça, já se vê) perguntando se convidar o Albert Einstein para um duelo de espadas com Aquiles seria igualmente um desafio. Na verdade ninguém riu. Marcello Grassmann recusou o convite. Na verdade se tratava da própria natureza do trabalho. O grande mural do Marcello Grassmann é o conjunto notável de sua obra, este retrato de corpo inteiro de uma visão de mundo. Mais até do que uma visão de mundo, uma maneira de sentir o mundo. O seu muralismo é justamente a junção, o conjunto de seus trabalhos. Georges Simenon, o escritor de espantoso sucesso, a quem André Gide considerava um dos maiores romancistas do século vinte, em entrevista para o Paris Review, nº 9, no verão de 1955, (cujo conjunto de entrevistas de escritores é um dos mais notáveis documentos da nossa época) disse para Carvel Collins: …Possuo uma determinação muito, muito forte acerca dos meus escritos, e seguirei o meu caminho. Por exemplo, todos os críticos disseram a mesma coisa durante vinte anos: “É hora de Simenon nos dar um grande romance, um romance com vinte ou trinta personagens.” Eles não entendem. Eu nunca escreverei um grande romance. Meu grande romance é o mosaico de todo os meus pequenos romances. Entende? Carvell Collins entendeu. Eu entendi. E o Marcello Grassmann, a seu próprio respeito, sempre soube disto. ***** JACOB KLINTOWITZ (Brasil, 1941). Crítico de arte, jornalista, editor de arte, designer editorial. Ganhou duas vezes o “Prêmio Gonzaga Duque” da Associação Brasileira de Críticos de Arte, pela atuação crítica. É autor de mais de uma centena de livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016 editor geral | FLORIANO MARTINS | [email protected] editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | [email protected] logo & design | FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80